Razão e sentimento

OPINIÃO24.07.202206:30

Francisco [Conceição] não falhou; quem falhou é quem paga dois mil euros e põe uma clausula de €5 milhões. Nem o pai nem o filho falharam

Q UANDO comecei a escrever a crónica de hoje lembrei-me do meu Pai, ou melhor, terá sido ele o inspirador dela, tão fortes sempre foram os nossos sentimentos mútuos, de pai e filho e filho e pai. E lembrei-me das histórias e conversas que, desde muito cedo, ele teve comigo. O primeiro jogo de futebol a que assisti foi no antigo estádio do Lumiar e foi o último desse campeonato - o Sporting ganhou ao Vitória de Guimarães por 4 a 0 e sagrou-se campeão. Ainda tenho na minha memória visual uns balões em fogo - pormenor da festa então vivida. O segundo jogo - e a esse assistiram também a minha mãe e as minhas irmãs - foi o da inauguração do Estádio José de Alvalade, outra memória bem viva e que marcou definitivamente a minha ligação ao clube de que viria a ser sócio a partir de 1963. O meu Pai incutiu-me o sentimento leonino, mas em razão daquilo que ele ambicionava que eu fosse na vida - advogado - não me fez sócio, deixando isso à razão da minha independência e poder de decisão. Não agi assim com os meus filhos, deixando que o sentimento falasse mais alto que a razão e inscrevi-os como sócios. Não estou arrependido e, eles, se me criticam, é apenas pelo facto de os não ter inscrito quando nasceram.
Mas voltando ao meu Pai, ele referia-se muitas vezes, a um colega de escritório que era da Moita e era cunhado de um sportinguista ilustre que aliás bem conheci - o Dr. Pacheco Nobre. E esse colega referia-se ao jeito para o futebol que os miúdos daquela zona - a outra banda - mostravam com a chamada bola de trapos nas ruas do Barreiro e de outras localidades: Dias Ferreira, veja bem o que eles podem fazer quando tiverem uma bola a sério nos pés!...O meu Pai constatou isso, transmitia-me e eu próprio tive a possibilidade de constatar na escola oficial que frequentei e nas ruas mais próximas o que era o futebol de rua! Como, felizmente, ainda há gerações anteriores à minha, eles podem testemunhar, como aquela zona deu, realmente, grandes jogadores, nomeadamente, ao Sporting. Não era tempo para oferecer salários, mas sim empregos, que era a forma que o Sporting então teve de atrair grandes jogadores, garantindo-lhes um futuro além da vida efémera de futebolista.
Este era o tempo em que os Pais dos grandes jogadores, nacionais e estrangeiros, se indignavam por os filhos faltarem à escola para ir jogar futebol. Tinham bem consciência de que a vida de futebolista era curta e, portanto, a sua preocupação era que os filhos tivessem um mínimo de instrução para enfrentar a vida. Não chegam os dedos das mãos para contar as biografias de jogadores que a essa relação com os pais se referem.
Hoje há pais que ficam furiosos com os filhos que faltam aos treinos para ir às aulas, pois vêem nos pés dos seus filhos a razão para as suas mãos deixarem de ter os calos do trabalho. Não se preocupam com o futuro dos seus filhos, mas sim no presente deles e nos rendimentos que eles lhes podem proporcionar. Os dezasseis milhões que Rafael Leão deve ao Sporting deviam ser pagos por quem não teve sentimento, nem razão, mas apenas o seu interesse imediato e oportunista.
Felizmente que hoje a formação do Sporting se preocupa também com a vida escolar, fazendo um trabalho de conciliação desejável entre o homem e o futebolista, segundo o velho princípio, com as devidas adaptações, mens sano in corpore sano. Os jovens que querem jogar futebol no presente, sem descurar o futuro quando arrumarem as botas, sabem hoje que o Sporting lhes dá essa oportunidade: a de estudar, jogar profissionalmente futebol e uma vida futura dentro ou fora do futebol.
Esta relação de pai e filho, jogador e adepto ou clube e seus dirigentes foi tema nestes últimos dias de jornais, rádios e televisões, infelizmente, e como vai sendo hábito, tratado com pouca seriedade e nível intelectual, quer no que respeita à razão, quer no que toca aos sentimentos.
De repente vimo-nos diante de uma situação que julgo inédita no futebol nacional (não sei se também no futebol internacional) de alta competição: um jogador muito promissor a jogar num grande clube de que o pai é o treinador!
 

«Por detrás daquele feitio irascível do Sérgio treinador está um pai que tem orgulho no filho»


Muita gente dá por assente - o que eu não faço - que Sérgio Conceição e o filho Francisco são do Futebol Clube do Porto desde pequeninos. Da boca deles nunca ouvi isso, nem isso tem qualquer interesse para a questão. Sei que, pelo menos, parte da formação do Francisco foi feita no Sporting e sei que Sérgio jogou noutros clubes, antes e depois de jogar no FC Porto.
No caso que tem ocupado a comunicação social, a discussão só se tornou viral, porque um conhecido adepto do FC Porto, fazendo jus à influência que, na realidade, tem, misturou alhos com bugalhos, no caso, razões profissionais com sentimentos paternais e filiais, traições e amores. O futebol é cada vez mais violento e irracional, mas ainda há espaço para a razão e sentimentos. Sabemos que há muita gente, malformada, que defende a destruição da família e outros valores essenciais à vida em sociedade. Viva essa gente como quiser, mas deixem que os outros ainda respeitem sentimentos e valores e sobretudo não queiram ser exemplo!
Eu fiz o meu estágio de advogado no escritório do meu Pai e com ele. Mas quando o terminei, abri escritório em Tavira, onde me encontrava a cumprir serviço militar, tornando-me autónomo e independente, mas sempre sem prescindir do seu conselho no que tocava as relações pessoais e profissionais. Depois de ter completado 50 anos de advocacia, tal como ele os completou em vida, e de ele ter falecido há 30 anos, ainda hoje me faz falta o seu conselho de Pai e de advogado.
Já tinha percebido que, por detrás daquele feitio irascível do Sérgio treinador, está um pai que tem orgulho no seu filho. Os abraços são diferentes dos outros e ainda bem; e as lágrimas também! Ainda bem, Sérgio: só lhe fica bem, ao contrário de outras coisas. Compreendo perfeitamente o seu silêncio, porque nada tem de dizer ou explicar, seja a quem for. Pode falhar noutras coisas, mas nesta, como pai e treinador, não falhou e não tem que pagar por aqueles que falharam redondamente. O Francisco não falhou; quem falhou é quem paga dois mil euros e põe uma clausula de €5 milhões. Nem o pai, nem o filho falharam; quem falhou foi a entidade patronal que não respeitou os seus trabalhadores, nem o pai nem o filho.
O problema, neste momento, não é o pai Sérgio e os filhos, ao fim e ao cabo, os seus herdeiros naturais e legais. A questão são outros herdeiros que se estão a movimentar para herdar a herança da... presidência!...
Outro tema - diferente - mas que tem a ver com o título da crónica de hoje, é o destino próximo de Cristiano Ronaldo.
O futuro de Ronaldo relativamente ao futebol passará, mais cedo ou mais tarde, pelo Sporting Clube de Portugal. Já o disse vezes sem conta, com convicção e desejo sincero, e, como sabem até já formulei o voto de que será presidente.
Ronaldo saiu do Sporting cedo e com pouco retorno desportivo e financeiro. O meu sentimento foi então de enorme tristeza. Mas hoje a razão diz-me que ainda bem, porque, muito provavelmente, se não tivesse saído naquela altura e para onde saiu, não seria seguramente o melhor jogador do mundo, para mim, de todos os tempos! A minha tristeza de então foi substituída pelo orgulho de ter formado o Ronaldo e a perspectiva do seu regresso.
Hoje é sentimento generalizado de que queremos o regresso de Cristiano Ronaldo, mas há que fazer funcionar a razão e escolher o que queremos: o jogador ou a marca CR7?
Uma certeza tenho: toda a família leonina deseja o seu regresso que ele afinal nunca esqueceu. Até sua Mãe, Dona Dolores Aveiro, o deseja, numa manifestação de gratidão pelo clube que lhe tirou o filho, o formou como homem e jogador e o projectou como figura mundial, sem nunca esquecer as famílias de origem.
Outra certeza tenho: será Ronaldo a decidir o que quer ainda dar ao Sporting.
E o que penso eu, além destas certezas?
O sentimento diz-me que ainda gostaria de o ver jogar com a camisola do Sporting, no meio dos jovens que se formaram também no Sporting, para orgulho destes e deleite nosso. Esta a minha visão romântica, de quem não tem responsabilidades executivas, e que, na idade em que está, não quer guardar para amanhã o que pode viver hoje.
A razão, porém, não me permite resolver esta questão crucial para o futuro do Sporting Clube de Portugal com tanta simplicidade, isto é, sentimentalmente, porque querer o regresso como jogador pode comprometer a associação à marca e uma parceria com outro alcance.
Deixo a decisão a quem de direito, designadamente ao Presidente e à sua Direcção e ao treinador e à equipa a decisão, porque eles sabem melhor que ninguém o impacto do regresso de Ronaldo ou do CR7. Se forem compatíveis os sentimentos e a razão do Sporting e de Cristiano Ronaldo ficaremos felizes!