Os lances impossíveis
O futebol não é uma ciência exata. Há nele variáveis demasiado subjetivas
O golo anulado a Benzema no jogo com o Liverpool (final da Liga dos Campeões) é perfeito para sublinhar algo que já se diz por aqui há muito tempo: há lances que não têm decisões inequívocas. Há lances que permitem mais do que uma interpretação e que podem ter duas soluções, sem que isso seja criminoso ou configure um atentado às regras. Por favor, percebam isso. Compreendo a intolerância de quem exige clareza e factualidade em todos os momentos de jogo, mas as coisas não são (sempre) assim. O futebol não é uma ciência exata. Há nele variáveis demasiado subjetivas, que nem as leis de jogo conseguem calibrar inequivocamente.
Se há lição a retirar daquele fora de jogo diabólico é que, lá como cá, aqui e ali, a avaliação de jogadas complexas, daquelas que nem as repetições esclarecem cabalmente, deve caber a quem está legitimado para decidir: os árbitros. Podemos concordar ou discordar, podemos gostar ou detestar, podemos aceitar ou criticar, mas não podemos nem devemos ver leviandade quando o veredicto de um lance impossível é dado por quem tem o poder para o fazer, ainda que isso colida com a versão que queríamos ver e ouvir. Já nem é uma questão de sensatez: é uma questão de confiança e respeito.
Quanto à decisão em si, convido-vos a rever a cronologia do lance:
– Benzema tocou a bola, em esforço. Ela bateu no pé direito de Konaté e sobrou depois para as pernas de Allison, que se projetara para o relvado, tentando a defesa (sem sucesso). Daí seguiu ligeiramente para a frente, onde apareceram Valverde (Real Madrid) e Fabinho (Liverpool). Inicialmente pareceu que o espanhol foi o primeiro a chegar à bola. Nas imagens que se seguiram já ficou a dúvida se não terá sido Fabinho a tocar antes no esférico. Se calhar foram os dois em simultâneo. Quem sabe? A definição de quem tocou ali na bola é crucial para esta análise. É que se, de facto, foi Valverde quem rematou, então esse seria o chamado momento do passe, que definiria eventual punição de Benzema por fora de jogo (e sim, estava mesmo fora de jogo). Por outro lado, se o tal contacto na bola tivesse sido dado em antecipação por Fabinho, o assunto estaria arrumado: o golo seria legal porque o passe para Benzema teria sido feito por ele próprio (último atacante a tocar na bola). Estão a acompanhar o raciocínio? Mas o que se seguiu foi ainda melhor:
Depois de ser jogada por Valverde (e vamos partir do princípio que foi), a bola voltou a tocar no pé de Konaté e foi depois jogada pelo joelho esquerdo de Fabinho, que se projetara ao solo para a interceção. Foi o médio do Liverpool quem fez inadvertidamente a assistência para o adversário. O árbitro assistente considerou que esse toque do brasileiro foi um ressalto, daí o fora de jogo. A leitura é compreensível e aceitável face à velocidade e enorme confusão da jogada. O VAR não interveio porque não teve certeza que tinha sido cometido um erro claro e óbvio (embora em lances destes se aconselhe a vender a credibilidade da decisão, levando o árbitro à zona de revisão junto ao relvado).
Na minha opinião (que para este efeito vale o que vale) a bola não bateu inesperadamente em Fabinho. Ela não tabelou num jogador inativo ou estático. O brasileiro escolheu, desde o início, ir ao lance e abordar a jogada com pé, joelho e corpo. Toda a sua ação, a sua opção de fazer tacle deslizante e tentar o corte, foi deliberada. Houve passe sim, embora mal direcionado. Mas mais importante do que isso será sempre a questão inicial: um lance assim, tão impossível de catalogar, deve ou não deve merecer o benefício da dúvida? É ou não é razoável que se aceite qualquer uma das interpretações como correta? Vamos aprender com isso, para memória futura. Pode ser?