BOLA DO DIA Os dois centímetros de Lage
A melhoria do Benfica está nos detalhes de Lage, sempre à procura que a melhor versão de cada jogador valorize o coletivo, mesmo conhecendo o risco de perder os papéis do Plano de Pormenor
Exímio contador de histórias, Cândido Costa recordou, há cerca de dois anos, uma história particularmente interessante sobre Jorge Jesus. Não me refiro ao (mais célebre) episódio do raspanete ao rapper 50 Cent por estar a atrapalhar o treino do Belenenses com o sound check — embora esse momento também ilustre bem a exigência do técnico. Refiro-me à memória de JJ, na preparação para a primeira final da Taça de Portugal que disputou como treinador, pelo emblema do Restelo, atravessar o campo de uma lateral à outra para corrigir um posicionamento de Cândido, colocando-o uns dois centímetros ao lado. Duas cadeiras ao lado, no estúdio do Canal 11, João Pereira, que agora vai ser treinador principal do Sporting, acenou com a cabeça, ou não tivesse trabalhado com Jesus.
Não sei se Bruno Lage chegará a este nível de detalhe de Jesus, obcecado sobretudo com a última linha defensiva, mas lembrei-me da história contada por Cândido Costa ao ver jogar o Benfica. É no Plano de Pormenor que se percebe a melhoria promovida pela troca de treinador. No acerto do posicionamento de Kokçu, que não é 6 nem 10. Na especificidade do papel de Rollheiser, primeiro, e de Aursnes, depois, para proteger Di María, que frente ao Atl. Madrid até foi menos ala direito e mais segundo avançado. E Akturkoglu, que agora joga ainda mais perto de Pavlidis, embora a partir da meia-esquerda, por vezes com Beste encostado à linha e Carreras a formar trio com Otamendi e Tomás Araújo, sobretudo na primeira fase de construção.
Lage não precisou de muito tempo para definir a sua base, mas é no detalhe que procura otimizar. Talvez não seja ao centímetro, mas muitas vezes a mudança avalia-se mesmo a metro. O técnico do Benfica continua a trabalhar para que a individualidade fique o mais confortável possível, convencido de que isso proporcionará um coletivo melhor. Existe sempre o risco de um perfecionismo exagerado, que acabe por tirar referências aos jogadores, mas até ver a equipa tem evoluído nas dinâmicas que apresenta, o que aumenta o grau de dificuldade para os adversários. O Benfica tem sido 4x4x2, 4x2x3x1, 4x2x4, 3x4x3…
É provável que se torne cada vez mais difícil resumir equipas a uma disposição tática única, até porque o playbook há muito que deixou de ser exclusivo do futebol americano — se é que alguma vez o foi. O problema é que a linha entre volatilidade e desorientação tática será sempre bastante ténue.