Onde Portugal acaba e os maiores começam
Seja fora ou em casa, aficionados vimaranenses dizem sempre presente. (Foto: Grafislab)

Onde Portugal acaba e os maiores começam

OPINIÃO15.02.202407:00

Revolucionar um produto falido como o futebol português obriga a pensar em latitude e a longo prazo. É preciso vontade de mudar e tomar decisões difíceis. E todos o sabem

Muito se tem falado em competitividade e, inevitavelmente, procura-se sustentação nos números de acordo com aquilo que se defende: diferença entre os primeiros e os que os seguem ou, por exemplo, a capacidade de derrotar candidatos ao título. Para mim, é pouco relevante se uma liga é competitiva per se, embora me interesse sempre mais quando existe emoção ou há a probabilidade, por enquanto aparentemente longínqua, de os três grandes terem companhia na distribuição do troféu mais desejado. Nem isso está próximo de surgir de forma esporádica, depois dos raros exemplos de Belenenses e Boavista no passado, quanto mais em termos de crescimento de um novo player até esse patamar, apesar das recorrentes promessas por cumprir do SC Braga. Para lá do gosto pessoal, a competitividade que me interessa é, sobretudo, aquela em que a nossa liga se opõe às outras. Aí, Portugal está claramente deficitário.

O défice surge logo abaixo de uma classe média-alta que apenas comporta o SC Braga. A nossa liga, digo-o há muito, não tem mesocracia. Ninguém consegue estabilizar aí, vai alternando entre épocas dignas desse estatuto e outras bem aquém das expetativas. Tanto se luta num ano pela Europa como no seguinte pela permanência, o que se reflete na competitividade diante de outros campeonatos. É que não é com a atribuição de mais pontos de ranking àqueles que disputam a Liga dos Campeões e sim em fazer crescer os restantes portugueses, na Liga Europa e na Liga Conferência, a fim de poderem ultrapassar emblemas de estatuto semelhante de outros países, que se mostra a real força de uma competição.

Três eucaliptos no deserto

Tamanha fragilidade resulta apenas de uma situação irresolúvel: há três eucaliptos a secar tudo à volta. Benfica, FC Porto e Sporting, ou por outra ordem que queiram que não seja a alfabética e vos interessar para as discussões de circunstância, pensam apenas no respetivo umbigo e controlam todas as decisões, ao mesmo tempo que distribuem elogios por quem finge que lidera e os deixa governar. 

Os restantes percebem que o que lhes sobra não é mais do que alianças que os diminuem, de acordo com as relações dos seus líderes, a localização geográfica ou as ramificações da história. Até as transferências internas penalizaram sempre os mais pequenos, feitas a troco de excedentários emprestados ou valores irrisórios, até que finalmente alguns clubes, com o SC Braga à cabeça e agora um Famalicão muito atento no recrutamento e irredutível na mesa de negociações, começaram finalmente a exigir o valor justo pelos melhores futebolistas. 

Entretanto, num país sem cultura desportiva – em que só esses três fazem mexer a agulha e há poucas cidades a caminhar ao lado dos seus emblemas –, e onde acresce decrescente poder de compra e uma impunidade a todos os níveis, as bancadas perderam gente e os clubes receitas. A Covid-19 alargou a crise e as guerras fizeram disparar custos a nível sufocante. O deserto alastrou pelo futebol português. 

O produto perdeu qualidade e o ruído constante ainda o torna pior, menos tolerável. O interesse lá por fora, se já não era muito, praticamente desapareceu. Não é nada estranho que tenha sido num país tão desconfiado de si próprio, em que todos querem ganhar a todo o custo e tudo serve de desculpa, a se apostar tão rapidamente no VAR. O problema é que o vídeo-árbitro não só falhou na promessa de criar a verdade desportiva, o que já se percebia na altura, como também ajudou a desumanizar o erro, hoje considerado incompreensível dado o acesso a tantas câmaras. Foi também nesse sentido que tanto se insistiu na explicação pública das decisões.

Centralizar o quê?

Não será a centralização dos direitos televisivos, por muitas vezes que se repita a demagogia, que salvará um produto empobrecido de um país ainda mais pobre. Uma competição que nem sequer reflete a verdadeira dimensão e realidade do território. 

Haverá mesmo por cá 18 clubes financeiramente saudáveis para um campeonato? Não só para pagar ordenados, mas sim para compor plantéis fortes? Os exemplos recentes mostram que não. Claro que a representatividade geográfica seria o cenário ideal, porém não parece ser para já a nação que temos. Os clubes têm de ser mais escrutinados e as regras mais apertadas e rigorosamente cumpridas. 

Um campeonato com menos equipas levaria a maior concentração de talento e mais encontros de maior grau de dificuldade. Uma terceira volta, por exemplo, garantiria mais clássicos sem vulgarizá-los. Com mais jogos grandes, naturalmente haveria maior atratividade para o público. E mesmo assim não iria chegar.

O bem-maior

Reformular o futebol português será sempre processo demorado e não dependente de um único fator. Os dirigentes terão de estar preparados para não receber os louros do seu trabalho, para não os poderem utilizar em caso de ambição… política. É preciso pensar no cenário global, não ter medo da rotura nem da eventual chico-espertice de um rival que se aproveite do momento, porque no final todos, de A a Z, irão ganhar. Se esta Liga não conseguir evoluir para tal cenário, terá de ser outro organismo, criado ou por criar, a fazê-lo. Uma nova classe de dirigentes, que aparecerá com o tempo, mais analíticos, facilitará provavelmente o processo, todavia quando chegar poderá já ser tarde demais. 

Um clube também não pode existir sem a comunidade. E esta tem de se conseguir identificar com o emblema da terra. Essa ligação deverá ser criada para lá do fim de semana e dos jogos, diariamente, com o envolvimento nos seus problemas e nas suas causas. A ponto de poder esperar receber de volta.

No fundo, tudo começa e acaba com a cultura desportiva, que nunca se fortalecerá sem o pensar a longo prazo, nas famílias e nas escolas. É lá que estão os atletas e os adeptos do futuro. Antes de se gostar de um escudo tem de se gostar de desporto, que, por sua vez, não nasce do vazio. É preciso praticá-lo, bem ou mal, e que faça parte da nossa vida. Não se enganem: no centro da comunidade encontra-se o desporto escolar, que em Portugal é nulo e nos Estados Unidos, por exemplo, a força de tudo. 

O caminho está à vista, só é preciso coragem.