O sentido das coisas

OPINIÃO19.11.202105:50

Fernando Santos bem merece escolher o momento de deixar a Seleção

T IVESSE o futebol da Seleção a categoria e a classe, a objetividade e a presença de espírito, a confiança e a determinação que o selecionador mostrou na entrevista que esta semana concedeu à TVI e certamente não estaria agora a equipa das quinas a fazer contas de cabeça ao play-off que está obrigada a vencer se quer ganhar o direito de marcar presença na fase final daquela que será, seguramente, a fase final mais luxuosa da história do Campeonato do Mundo de futebol. Na entrevista que procurou pôr os pontos nos is com Fernando Santos, o treinador de Portugal teve muito do que faltou à Seleção no jogo com a Sérvia - sobretudo enorme clareza de ideias, muito espírito, convicção, segurança, foco e muita vontade de vencer.
Há muito que muito critico o futebol da Seleção de Fernando Santos; cheguei mesmo a ser muito crítico, por exemplo, durante a fase final do Euro-2016, que ainda hoje creio que Portugal venceu, em boa parte, graças à alma de toda a comitiva que esteve em França e à ajuda da felicidade divina, que as equipas de futebol tantas vezes agradecem, naturalmente sem a conseguirem definir e muito menos explicar.

E NQUANTO muitos aplaudiam, e bem, o sucessivo avanço no torneio que se realizou em França, porque no desporto de alta competição o resultado é mesmo o mais importante, alguns de nós, levados evidentemente pelo sentido crítico, entretinham-se a avaliar a qualidade do jogo português, e eu próprio usei a pena - arma dos jornalistas - para o efeito crítico da forma de jogar da equipa portuguesa, quase sempre tão pouco atrativa aos olhos de quem acredita, como eu, que no futebol não basta apenas ganhar, apesar de ganhar ser realmente o principal dos objetivos.
Recordo, aliás, que um pouco à semelhança do que sucedeu com a Seleção de Scolari no inesquecível Euro-2004, também em 2016 Portugal só começou, realmente, a dar melhores ares da sua graça depois de Fernando Santos alterar a equipa - passando a apostar quase declaradamente na então linha média do Sporting, com William, Adrien e João Mário - à qual juntou, a partir dos quartos de final, um miúdo que surpreenderia a Europa e dava pelo nome de Renato Sanches.
Recordamo-nos todos, certamente, de Scolari ter começado logo a mudar a equipa do primeiro para o segundo jogo de Portugal no Euro-2004, depois daquela entrada em falso frente aos malfadados gregos. A derrota no jogo de estreia levou Scolari a trocar de imediato meia equipa e a verdade é que a Seleção ganhou outra expressão exibicional. Não chegou para vencer aquele nosso Euro, mas chegou para ir, com bastante brilho, até à final, pelo menos com o brilho que talvez não tenhamos voltado verdadeiramente a ver na Seleção até hoje. E já lá vão mais de 15 anos, note-se!...

POIS bem, aqui chegados, depois de tanto caminhar - Fernando Santos é selecionador desde 2014 e o único com títulos, e que títulos!, conquistados em toda a história da equipa das quinas -, parece consolidar-se a ideia de a Seleção continuar a ser um bom exemplo de como onze craques não fazem necessariamente uma grande equipa. Não é um problema de hoje. E parece não ser um problema exclusivo do mandato de Fernando Santos como selecionador português.
São discutíveis algumas das opções? Questionáveis algumas das decisões? Mas não serão sempre?
Claro que compete ao treinador enquadrar o talento, escolher a estratégia, construir e modelar a química entre jogadores, tomar as decisões que melhor rentabilizem as qualidades de cada um.
Mas, com franqueza, será justo escrutinar apenas o treinador? E os jogadores? Não deviam dar mais, ser mais focados, revelarem mais determinação, disporem-se com maior firmeza a deixar a pele em campo?
Não se trata de apontar nomes ou encontrar culpados, trata-se de propor o desafio de todos fazerem a sua reflexão, de se olharem ao espelho, de cada um perceber não o que a Seleção pode fazer por cada jogador, mas o que cada jogador pode fazer mais pela Seleção. Este filme não é de hoje. E talvez mande a verdade reconhecer que poucas vezes ao longo da história a Seleção portuguesa mostrou um grande futebol, dimensão de grande equipa, conjunto verdadeiramente ao nível das melhores seleções do planeta.
Não nos falta talento individual e até genialidade, não nos falta qualidade técnica, não nos falta, como agora, potencial do mais alto nível, não nos falta, também, como se tem visto nos últimos anos, um cada vez maior e melhor campo de recrutamento, ao ponto de quase conseguirmos dois onzes de craques. O que falta então? Querem que lhes diga: falta foco e espírito, falta tê-los sempre no sítio, como dizem os espanhóis. Sabemos que somos bons. E isso, por vezes, parece bastar-nos. É fatal! Ou será que já nos esquecemos da nossa própria história? De tantas que foram as quedas? Das imensas vezes que nem conseguimos ser suficientemente fortes com os mais fracos quanto mais com os mais fortes? E dos sucessivos insucessos décadas a fio?
 

 

T UDO é, evidentemente, discutível e apenas sobre isso não há discussão, mas nessa espécie de paradoxo da tangência, creio que vale a pena deixarmos um pouco de lado o ataque a Fernando Santos - um homem de uma irrepreensível honestidade intelectual - e determo-nos no que sucedeu ao minuto 90 do jogo com a Sérvia, que nos atirou irremediavelmente para o play-off.
Lance de bola parada: SEIS jogadores sérvios colocam-se à entrada da pequena área de Portugal, QUATRO são os jogadores portugueses focados na marcação, e outros dois posicionam-se num espaço sem opositor. Sobram, pois, inevitavelmente, dois adversários, deixados libertos, sendo que um deles é só o melhor sérvio no jogo aéreo, o avançado Mitrovic, treinado no Fulham pelo português Marco Silva. O que sucedeu naquele minuto 90 todos viram. Mitrovic cabeceou à vontade e fez o golo do triunfo sérvio. Um choque? Naturalmente!
Mas terá sido Fernando Santos a mandar a equipa defender assim?!

C REIO, por outro lado, não dever compreender minimamente a personalidade de Cristiano Ronaldo nem conhecer a frontalidade de Fernando Santos quem pareceu admitir a existência de um conflito entre os dois, do mesmo modo que só mesmo por se desconhecer o caráter do selecionador se poderia julgar possível que mantivesse silenciosamente em lume brando um alegado desconforto pelo comportamento de Rafa na Seleção, como se Fernando Santos fosse homem para contribuir para a especulação de que Rafa poderia ser, agora, um dos culpados pelo estado de pouca graça em que caiu, inesperadamente, a equipa.
Parece-me, por fim, apesar da profunda desilusão dos adeptos pela negra semana da equipa das quinas, que não faria realmente qualquer sentido afastar o selecionador agora, a quatro meses do play-off, quando, como referiu, e bem, o próprio Fernando Santos, está ainda totalmente aberta a possibilidade de Portugal (e este selecionador) cumprir mais um de entre todos os objetivos já cumpridos desde 2014, e cumpridos, nunca é demais recordá-lo, com a distinção absolutamente excecional de termos visto o que muitos de nós, com a derrota no Euro-2004, tinham perdido a esperança de poder ainda vir a ver: Portugal sagrar-se campeão da Europa.

N ÃO é, evidentemente, a gratidão que alimenta a relação dos adeptos com o futebol. O que os alimenta é o sucesso, a paixão pelo jogo, o talento de equipas e jogadores, a arte criativa do imprevisto e do surpreendente, a coragem da ousadia, o espírito e a ambição. Mas também no futebol deve haver valores inegociáveis - ética, respeito, seriedade, integridade.  
E tal como não pode, nem deve, valer tudo dentro do jogo, também não deve valer tudo fora dele.
A Fernando Santos não devemos exigir que saia; ele saberá escolher o momento de deixar a Seleção. Merece-o. Mais do que ninguém!

N ÃO, confesso que também não gosto de ver Cristiano Ronaldo ser, muito provavelmente, dos poucos capitães de equipa das grandes seleções mundiais (e talvez, também, das pequenas) que escolhe não dar a cara em momentos como o que a Seleção portuguesa viveu, em Lisboa, no último domingo, nem que fosse para assumir diante dos adeptos, logo ali, no calor da desilusão, a esperança e a confiança de ver Portugal no Mundial de 2022.
Mas que esse desconforto não nos leve a perder o sentido das coisas ou a noção do que Cristiano representa para a Seleção e para Portugal. Devemos todos, como amantes do futebol, fazer por merecê-lo. Cristiano mudou o futebol português. E será ainda por muito, muito tempo, o seu melhor exemplo!