O rival visível

OPINIÃO07.12.202106:00

O ciclo de Jorge Jesus no Benfica terminou. Poupem os adeptos que estão cansados disto, porque ainda temos muito a ganhar

Aatual temporada iniciou-se com a promessa de uma espécie de novo amanhecer no Benfica. Apesar de uma época desastrosa que muitos ainda não tinham conseguido esquecer - eu era um deles -, apesar do verão tumultuoso em que vimos mais um presidente do clube detido por suspeitas de lesar o clube, apesar da preocupação com as consequências imediatas de mais esse dano reputacional, e apesar das muitas dúvidas acerca da constituição do plantel, do projeto desportivo, ou de quem o liderava, muitos adeptos - eu fui um deles - acabaram por acreditar que era tempo de um novo começo, no mínimo dentro de campo.

Houve uma combinação de fatores que explicou essa suspensão da descrença: por um lado, um plantel em que muitas promessas adiadas chegavam à segunda época e pareciam finalmente prontas para demonstrar o seu valor, a par de um reforço - João Mário - que oferecia desde logo garantia de qualidade; por outro, a convicção de que não dava para piorar; também Jorge Jesus seria capaz de muito mais. Por muito sofrível que tivesse sido a época anterior, esta parecia conter mais alguns dos ingredientes que aprendemos a apreciar na equipa de Jorge Jesus, que não se resumem a isso mas geralmente se traduzem numa elevada nota artística, a expressão cunhada pelo próprio que há muito tempo deixámos de ouvir. Finalmente, o facto de termos tido quase todos os atletas do plantel e membros da estrutura infetados com Covid-19 parecia afastar qualquer hipótese de uma crise semelhante se vir a manifestar. Esta crise não foi um pormenor na época do Benfica, como aliás o seu departamento de comunicação fez questão de salientar ao criar um documentário de dois episódios chamado O Rival Invisível.
 

«Confiei e apoiei o regresso de Jesus mas há muito que deixei de ver nele o futuro próximo do Benfica», escreve Vasco Mendonça


Penso que não cometo um erro se disser que o Benfica foi o único clube no mundo que, tendo sido acometido por um surto de Covid-19, entendeu que seria oportuno documentá-lo de forma exaustiva em filme, recolhendo longos testemunhos dos vários atletas e funcionários afetados pela doença, assim como outros que acompanharam a situação de perto. Ora, sendo verdade que este vírus afetou o desempenho dos atletas e que isso prejudicou a prestação desportiva individual e coletiva, não me pareceu naquela altura boa política que se fizesse disso um conteúdo, sob pena de ser confundido por adeptos mais decepcionados e desconfiados - eu fui um deles - como uma peça de comunicação visando justificar o insucesso desportivo exclusivamente em função da pandemia.
Se é verdade que o Covid-19 não ajudou, estou menos certo de que o principal rival seja invisível. Chegados a Dezembro de 2021, parece-me evidente que os problemas iam e vão para além disso. São aliás bastante visíveis.

Jorge Jesus teve todas as oportunidades que merecia para satisfazer as expectativas dos adeptos que confiaram no seu regresso. Passados 18 meses, o balanço é muito negativo: a equipa não conquistou títulos, esteve quase sempre longe desses momentos, não mostrou a nota artística que tantas vezes caracterizou as equipas de Jesus, e não mostra por estes dias a consistência exigida a quem quer vencer provas de regularidade. Talvez o Jorge Jesus que regressou ao lugar onde foi feliz já não seja o mesmo. Talvez nós adeptos - eu sou um deles - não tenhamos hoje a mesma paciência para as particularidades deste treinador. O que sei é que sempre as tolerámos em nome de uma ideia de jogo que não precisava de grande teoria para que todos a compreendessem: nos seus melhores momentos, as equipas de Jorge Jesus encontram sempre forma de vencer os jogos, empolgar os adeptos e fazer estas duas coisas repetidamente até levantarem troféus.

O Jorge Jesus que temos visto é um treinador de ideias cansadas. Dentro de campo, tem perdido boa parte dos confrontos táticos que permitem afirmar a liderança do futebol português. Fora do relvado, parece igualmente desgastado, muitas vezes incapaz de reconhecer devidamente a valia dos adversários ou a pertinência das críticas que lhe são feitas. Jesus tornou-se um adversário da mudança e o labirinto do seu futebol, assim como algumas das suas decisões no planeamento desportivo, não são convergentes com aquelas que deveriam ser prioridades da equipa. É verdade, eu sei. Jorge Jesus já era assim antes. A diferença é que muitas das suas equipas jogavam à bola e eu, como muitos outros adeptos, estive muitas vezes disposto a aceitar o custo daí resultante. Infelizmente isso aconteceu em detrimento da construção de um projeto estruturado para o futebol. Esse projeto, sabemos hoje, deve evitar endeusar alguém como Jorge Jesus.

Não há mais recomeços no horizonte. O problema das ideias cansadas é que ninguém gosta de pagar bilhete para as ver em prática. O futebol do Benfica é hoje mais conhecido pela sua organização defensiva e por oferecer a iniciativa ao adversário do que pela capacidade de impor uma ideia e, com arte e engenho, acossar os oponentes até cederem. Quantas vezes vimos isso desde que Jorge Jesus regressou ao Benfica? Quantas vezes fomos ao estádio com a certeza de que íamos ver o tal rolo compressor de outros tempos? Nenhuma. Eu confiei no regresso de Jorge Jesus e apoiei o seu regresso, mas há muito que deixei de ver nele o futuro próximo do Benfica. À medida que os maus resultados e as exibições periclitantes se acumulam, parece-me evidente que estamos a sacrificar resultados ao manter este treinador. Nem futuro nem presente. O ciclo de Jorge Jesus no Benfica terminou. Poupem os adeptos que estão cansados disto, porque ainda temos muito a ganhar. Dizem-me que agora não é uma boa altura para mudanças drásticas. Que pode ser arriscado, como se manter as coisas tal e qual como estão não fosse um risco igualmente preocupante. Certo, o Benfica não precisa apenas de um novo treinador. Precisa de um projeto desportivo mais claro, um que todos consigam perceber e não apenas quem trabalha no clube.
Não é nada contra Jorge Jesus, mas apenas e só pelo Benfica. O presidente Rui Costa tem aqui mais uma oportunidade para determinar um virar de página importante. Que o faça mais cedo do que tarde.