O futebol precisa de saudade

A mercantilização através dos direitos televisivos está a dar cabo da pausa. Tal como os jogadores e treinadores, os adeptos também precisam de tempo. Como qualquer bom vinho, um bom jogo de futebol precisa de respirar antes de ser consumido

O futebol está a viver uma estranha e talvez inédita fase: mesmo aqueles que dele dependem começam a considerar que há limites para tudo. O movimento (ainda orgânico) de jogadores e treinadores a clamar contra o calendário excessivo promete crescer de forma acelerada à medida que aumentam as lesões graves em futebolistas de primeira água.

O trabalho que A BOLA publicou ontem, baseado em estudos académicos, não deixa dúvidas quanto à correlação entre o aumento de competições e as consequências do foro traumático, em particular nos joelhos, o maior pesadelo para qualquer atleta de alta competição. Porque apesar do desenvolvimento das técnicas de recuperação e dos cuidados que cada um tem a nível particular (contratação de nutricionistas ou de fisiologistas), há uma coisa que ainda não mudou: os futebolistas continuam a ser humanos. É insustentável que um jogador faça 60 a 70 jogos por temporada durante dois ou três anos seguidos sem que haja repercussões no corpo a curto prazo.

Chegámos, pois, a um momento em muitos assumem: «Há futebol a mais.» Um dos melhores testemunhos sobre o assunto foi aquele deixado a A BOLA por Peter Schmeichel, alertando para o perigo de o desporto-rei mundial ficar para os futuros consumidores como o basebol para os norte-americanos: todos os dias há transmissões, os monitores dos bares não passam outra coisa, mas não há uma relação profunda com o jogo. É aquilo que as empresas de estudos de audiências definem como papel de parede: o aparelho está sintonizado no canal, mas há ali um efeito zombie com baixo valor de mercado.

O terror dos futebolistas está a aumentar

8 outubro 2024, 10:45

O terror dos futebolistas está a aumentar

Não há memória de tantas lesões graves no joelho. A BOLA falou com especialistas da área para perceber a dimensão do flagelo. Há mais mazelas deste tipo no futebol do que noutras modalidades

A razão de termos chegado até aqui é apenas uma: os grandes fundos de investimento chegaram em força nos últimos 10/15 anos ao negócio das transmissões televisivas e obrigam os organismos que tutelam o futebol a aumentar a oferta. Não há outra razão, que não a financeira, para a FIFA ter criado o Mundial de Clubes com o formato atual (é mesmo para avançar?). O mesmo motivo que esteve na base da proposta, entretanto adormecida, de passar a realizar os Campeonatos do Mundo de seleções de dois em dois anos em vez dos atuais quatro de intervalo.

Tudo isto tem proporcionado o fim de um sentimento fundamental para o sucesso deste desporto: a saudade. Se o jogador precisa de tempo para recuperar do esforço e o treinador para sistematizar processos, o adepto precisa de tempo para alimentar a euforia quando ganha e a frustração quando perde. Da maneira como isto está, só há espaço para a ressaca, nunca para a cura e renovação de expectativas.

Mas há sinais que deveriam servir de alerta: em primeiro lugar, a ausência de uma oferta consistente para a transmissão do Mundial de Clubes da FIFA; em segundo, a descida vertiginosa do valor dos direitos televisivos em França: de mil milhões de euros/ano em 2020 para €500 milhões em 2024; em terceiro, o regresso à transmissão de jogos da liga espanhola em sinal aberto na China para combater a quebra de audiências.

Sabendo que os jovens de hoje (e pagantes amanhã) têm uma taxa de retenção baixa sobre tudo o que veem, os decisores terão de ter em mente que cada jogo de futebol tem mesmo de ser especial. Como um bom vinho, um bom jogo de futebol precisa de respirar antes de ser consumido.