O espírito

OPINIÃO15.04.202206:30

Benfica fez cinco golos em Anfield e sem o ‘VAR tecnológico’ teria acabado o jogo a zero, o que é inacreditável!

OBenfica fez cinco golos em Anfield, casa mítica do poderoso Liverpool, e todos eles foram considerados irregulares, imagine-se, pelo árbitro auxiliar. Se não fosse o VAR, as águias teriam saído do jogo a zero, o que é absolutamente inacreditável, tendo em conta, sobretudo, a ideia de se dever favorecer quem ataca e, por outro lado, a indicação de apenas se dever assinalar fora de jogo quando a situação é suficientemente clara para não oferecer a mínima dúvida.
O que fez, porém, o auxiliar da equipa neerlandesa de arbitragem? Assinalou sempre fora de jogo, o que é proeza de registo, tendo, no entanto, falhado por três vezes, as suficientes para que o Benfica pudesse deixar o relvado do Liverpool com um empate que não apenas dignifica a equipa portuguesa como não pode deixar, em boa medida, de surpreender até a Europa do futebol.

Abençoado VAR, que salvou, na verdade, o resultado e o esforço do Benfica para sair de Anfield de cabeça bem levantada, e abençoado VAR no sentido mais tecnológico, porque no futebol, o fora de jogo, felizmente, não está sujeito a interpretação; a tecnologia determina, simplesmente, se há, ou não há, fora de jogo!
Para se compreender melhor a ação absolutamente negativa do auxiliar de arbitragem relativamente aos lances e ataque do Benfica, bastará pensarmos no que teria sucedido se, porventura, os remates de Gonçalo Ramos, Yaremchuk e Darwin não tivessem dado golo imediato. O árbitro teria interrompido o jogo por fora de jogo prontamente assinalado pelo auxiliar, impedindo assim que a equipa portuguesa pudesse, eventualmente, conseguir o golo numa recarga ou numa segunda vaga do mesmo lance.

Dos cinco golos que o Benfica marcou e sempre os árbitros auxiliares consideraram apontados em fora de jogo (e apenas três, na realidade, valeram) só no último, anulado a Darwin, se pode considerar que o jogador do Benfica estava em clara posição irregular, bem à frente do penúltimo defensor do Liverpool, e, portanto, a justificar plenamente que o árbitro auxiliar levantasse imediatamente a respetiva bandeirola.
O que não se compreende é a decisão de um árbitro auxiliar tomar como critério assinalar sempre fora de jogo, como assinalou, aos mais prometedores ataques da equipa benfiquista. Qual o objetivo? Defender o jogo? Defender o espetáculo? Proteger o futebol?

Dirão alguns que a crítica a este tipo de arbitragem será mania da perseguição dos portugueses, ou, para sermos mais globais, mania da perseguição dos tidos por mais fracos, e por isso se argumenta, tantas vezes, de forma politicamente muito correta, mas superficial e pouco compreensiva, que nunca se pode queixar das arbitragens quem joga menos do que o adversário ou não joga tanto como devia jogar.
Em Portugal, o Benfica, sejamos sérios, tem sido muito vítima disso. Joga menos do que devia? Sim, joga. Mas que tem isso a ver com os erros de arbitragem? E porque não pode um erro de arbitragem ser determinante para se não ganhar um jogo? Claro que pode.

Salvo, pois, pelo VAR tecnológico (e não pela interpretação de um VAR humano), e salvo, sobretudo, pela qualidade de qualquer uma das finalizações de três dos seus mais prometedores ataques (exemplar remate de Gonçalo Ramos, muito boa decisão de Yaremchuk, fantástica conclusão de Darwin), o Benfica lá conseguiu sair de Anfield com um empate (o primeiro, no histórico de 12 confrontos com o Liverpool) que, sem significar sucesso, não deixa, na verdade, de honrar o prestígio do clube e o valor de uma equipa que todos afirmam ter problemas (muitos problemas, sim), mas que ninguém (eu incluído) reconhece não ter conseguido ter ainda, nestas duas últimas épocas, a estabilidade que todas as equipas precisam para se construir melhor.
Ou seja, caímos todos, com frequência, na contradição de, por um lado, fazermos, por exemplo, a defesa do continuado trabalho de um treinador (Sérgio Conceição leva cinco anos no FC Porto a trabalhar ideias, modelos, exigências e valores, e Rúben Amorim teve, logo em março de 2020, a oportunidade de construir o seu núcleo duro e, a partir dele, desenvolver o processo que queria para o Sporting), e, por outro, exigir que as equipas se mostrem prontas como os cogumelos. Mas não é possível!

Um exemplo: no onze do Benfica que jogou, esta semana, em Liverpool, estavam apenas dois jogadores (dois jogadores, note-se!!!) do onze das águias que, em julho de 2020 (nem há dois anos, portanto…), jogou a última jornada (Benfica, 2-Sporting, 1) do campeonato que a pandemia interrompeu. Foram eles Vlachodimos e Julien Weigl. Imagine-se, ainda, que dos suplentes das águias naquela noite de verão, na Luz, frente aos leões, nenhum esteve agora em Anfield, e de entre eles, resta apenas Rafa no plantel atual!!!

Explicará isto o insucesso da equipa encarnada, em matéria de títulos, nas duas últimas épocas? Claro que não. Em absoluto, nunca nada explica tudo. Mas como em tudo o que é relativo, há sempre coisas que ajudam melhor do que outras a explicar, pelo menos, parte do que aparentemente parece mais incompreensível.
No fundo, e de uma forma evidentemente simplista, poderia dizer-se que o futebol do Benfica tem sido tão instável como instável tem sido o momento do clube, sobretudo desde que no início do verão do ano passado o anterior presidente foi obrigado pelas autoridades judiciais a deixar a presidência do clube.
Por muito menos, já outros grandes clubes mergulharam em crises muito difíceis de ultrapassar. Ou não é verdade? O FC Porto do intocável presidente, que é presidente há 40 anos, não andou à deriva entre 2014 e 2018? E o Sporting, de excecional grandeza e ecletismo, e de tanta gente ilustre, não teve dois longos períodos sem conseguir ser campeão?  

Não é difícil, ainda por cima, reconhecer, pois, que o anterior presidente do Benfica não era um presidente qualquer, no sentido em que não era um presidente com pouco tempo de clube e, portanto, sem impacto e sem marca profunda. Muito pelo contrário. O anterior presidente do Benfica foi presidente do Benfica durante praticamente 18 anos (!!!) e durante 18 anos (basta que olhemos para cada um de nós) é impossível que alguém não torne, qualquer que fosse a organização, essa mesma organização absolutamente refém da liderança pessoal e praticamente intransmissível de um mesmo homem. Como foi o caso.
E não são para aqui chamadas as razões que levaram as autoridades judiciais a impedir que Luís Filipe Vieira pudesse continuar a liderar o clube pelo qual deu, indiscutivelmente, tanto dele próprio, naturalmente com muitas virtudes e muitos defeitos, muito em especial os defeitos de quem se vê prolongado como Vieira se viu no poder de uma instituição gigante e tão poderosa como é a instituição Benfica.

Como pode alguém, então, sugerir como razoável que se analise o futebol de uma equipa como a do Benfica sem considerar, minimamente, minimamente, repito, os efeitos devastadores (sim, devastadores!) que a profunda crise e a enorme instabilidade, até emocional, ou sobretudo emocional, que o Benfica tem vivido nos últimos dois anos, pode ter tido no conjunto de profissionais do futebol da Luz?!
Explicarão essa crise e essa instabilidade (impossível ignorar a atmosfera negativa que foi sendo criada, também, em volta do treinador Jorge Jesus…), o conjunto dos sucessivos maus resultados que a equipa foi acabando por registar, sobretudo nas competições nacionais (praticamente certo que pela segunda época consecutiva não vai ter lugar direto na Champions)? Claro que, mais uma vez, não explicam tudo. Mas ajudam, evidentemente, e mais uma vez, a explicar alguma coisa.

Tanto mais que o futebol (simples de perceber, creio, mas difícil de explicar) vive muito das atmosferas criadas de fora para dentro de uma equipa, mais ainda quando essas equipas representam clubes da dimensão e grandeza do Benfica, ou de qualquer dos outros dois grandes de Portugal.
Podemos, aliás, recordar o que Sérgio Conceição, mesmo tendo sido campeão logo no primeiro ano, teve de passar no FC Porto quando, na segunda época, perdeu a Liga para o Benfica de Bruno Lage. Logo se ouviram referências do clube exigir, nas televisões, a demissão do treinador portista, viram-se os adeptos, e os protegidos da claque principal, a condenar fortemente a posição de Conceição, e em muitos momentos a estrutura interna do clube quase virou um furacão onde quase sempre parecia estar uma fortaleza.
O que valeu a Sérgio Conceição? Um presidente com 40 anos de clube (!!!), que faz sempre, para o bem e para o mal, o que entende e não o que, porventura, neste ou naquele momento, quererão que ele faça. Isso, no futebol, meus caros, faz muita diferença. Por vezes, toda a diferença!

PS: O futebol do Benfica tem problemas, claro que tem, e, alguns, são tão evidentes que é impossível disfarçá-los. O jogo de Liverpool serve, aliás, a meu ver, de compêndio sobre problemas e qualidades deste Benfica. Bom ‘livro de estudo’ para o próximo treinador. E um Darwin de coleção. Lembrar-me eu que cheguei a ouvir dizer que não tinha categoria nem técnica.  E que até devia ir para a equipa B! Pois é, caro Miguel Sousa Tavares, tem, na verdade, toda a razão. ‘Nunca tantos souberam tão pouco sobre tanta coisa’!...