O empregado

OPINIÃO10.02.202305:30

Alguns treinadores são demasiadamente bem pagos para se acharem ‘meros empregados’...

AINDA esta semana escrevia num editorial deste jornal o eterno diretor Vítor Serpa (diretor mais de 30 anos, diretor para sempre!) que o treinador de futebol, seguramente mais do que nunca, é hoje, também, um gestor. Referia-se, porém, e apenas a propósito do Académico de Viseu-FC Porto de quarta-feira, à forma como o treinador do FC Porto geriu a equipa, a pensar, evidentemente, no clássico de domingo, em Alvalade, que não sendo, porventura, decisivo, pode, porém, decidir muita coisa.

O treinador de futebol no futebol de alto nível, sobretudo nos clubes/SAD que competem para conquistar títulos, não são, no entanto, apenas gestores da equipa do ponto de vista desportivo, não conduzem apenas uma equipa multidisciplinar que dirige e prepara um plantel de 25/30 jogadores profissionais para tentar ganhar. Um treinador de futebol, bem vistas as coisas, talvez seja hoje o gestor principal da estrutura profissional se pensarmos que os jogadores são os grandes e principais ativos de uma SAD.

Além disso, o treinador de futebol de um FC Porto, Benfica ou Sporting, é hoje principescamente pago (quase sempre entre 2 a 4 milhões de euros de salário líquido por época), exatamente porque deve não apenas preparar jogadores e equipa para ganhar e discutir títulos, como deve ser um defensor da política da SAD, gestor no terreno da aplicação dessa política, condutor de um grupo de trabalho que envolve hoje entre 40 e 50 pessoas no total, entre jogadores, técnicos, médicos, especialistas qualificados nas mais diferentes áreas, da observação à análise, da fisiologia e fisioterapia à psicologia, do nutricionismo e equipamentos ao apoio administrativo, que me desculpem os eventualmente ignorados.

Não sendo, naturalmente, responsável por todas as diferentes áreas (um diretor clínico é um diretor clínico) o treinador é o líder principal; não é ele que decide quando um jogador está ou não física/clinicamente apto a competir; mas é ele quem liga tudo, quem une as diferentes áreas, é ele que se preocupa com todas elas, é ele que determina filosofias de trabalho, orienta regras de comportamento e compromisso, porque é o treinador que tem, igualmente, o predicado de sugerir à administração da SAD a substituição de um clínico, de um fisioterapeuta, um cozinheiro ou um técnico de equipamentos, mesmo não percebendo de cada uma dessas áreas.

O treinador é, por norma, nos grandes clubes, o gestor mais bem pago, e as SAD desses grandes clubes já procuram, em muitos casos, que o treinador ganhe mais do que qualquer jogador, ao contrário do que acontecia até há relativamente poucos anos, o que, de algum modo, fragilizava sempre a posição do treinador no contexto da liderança junto dos jogadores.

Aindependência, mas também o poder e o estatuto de um treinador vêm muito do dinheiro. Do dinheiro que já tem e do dinheiro que o clube/SAD lhe paga. Por mais de uma vez, o treinador do FC Porto, por exemplo, deixou claro não precisar do futebol para viver e, sobretudo, não precisar do futebol para alimentar a família, que é, em última análise, a maior preocupação de cada um de nós. É isso que lhe dá independência. E imagino que não haja nada melhor na vida e um treinador que conseguir a independência de poder dizer não.

No caso do treinador do FC Porto, no entanto, a independência leva-o, porventura, a excessos que talvez não cometesse se dependesse mais do futebol. Excessos na linguagem quando está a quente, excessos nalguns comportamentos, excessos até na relação que estabelece com árbitros, os mais diferentes adversários ou jornalistas ou todos aqueles que, alegada ou literalmente, emitem opiniões diferentes das do treinador do FC Porto, mesmo quando são emitidas de forma correta ou respeitadora.

Por ser tão independente (e ainda bem que conseguiu o estatuto financeiro que lhe confere essa independência) o treinador do FC Porto não pode nem deve achar que todos lhe querem mal por criticá-lo; não pode exigir impunidade; não deve considerar-se intocável, ou dar a ideia de se estar a borrifar para tudo e para todos os que não pensam como ele, não veem as coisas como ele, nem interpretam tudo como ele.

NO meu caso particular, devo confessar, mais uma vez, a minha admiração pela competência profissional do treinador do FC Porto, e confesso, ainda, sem qualquer complexo, que sempre me habituei a ver no atual treinador do FC Porto um bom ser humano, sensível, frontal, muito transparente, que faz, não tenho qualquer dúvida, tudo  pela família, pelos amigos, por todos de quem gosta, e ainda muito por gente necessitada, sempre que conhece casos de dificuldades humanas ou sempre que um ou outro drama da vida mais o toca. Nunca esteve, pois, em causa, a meu ver, o bom fundo, como diria o meu querido pai, do caráter e da humanidade do atual treinador do FC Porto.

O que o atual treinador do FC Porto não pode é esperar reconhecimento ou elogio quando compromete algumas regras de comportamento quando está exclusivamente na pele de treinador de futebol e, neste caso, mais acentuado ainda, na pele de treinador do FC Porto, e muito menos quando insulta publicamente (sem qualquer pedido de desculpas) instituições como a que edita este jornal há mais de 75 anos (que ajudou a levar o futebol português às costas durante décadas) ou pessoas que apenas procuram desempenhar, como é o caso da equipa que conduzo, a atividade profissional com seriedade (porventura nem sempre da forma mais justa) e, sempre, com respeito.

FICA, assim, um parêntesis nas considerações sobre o treinador do FC Porto, que ainda esta semana, e esse é o ponto, desta vez, de alguma discordância, se considerou, erradamente, a meu ver, um mero empregado do clube, à semelhança, aliás, do que também o treinador do Sporting, por mais de uma vez, chegou a afirmar, sobretudo no auge do conflito aceso com a administração da SAD leonina, a propósito, então, da transferência de Matheus Nunes para o futebol inglês.

Mas será o treinador, sobretudo nos grandes clubes, realmente, e apenas, um mero empregado, ou alguns treinadores desses grandes clubes acham isso quando lhes interessa e acham o contrário quando discutem contratos?

O treinador de futebol de um grande clube é não apenas um profissional altamente qualificado (e por isso tão bem pago), como um gestor de enorme responsabilidade estrutural, que não pode, nem deve, desafiar publicamente a entidade patronal, nem pôr em causa, também publicamente (como chegaram a fazer os treinadores de FC Porto e Sporting) a gestão conjuntural ou estrutural. A ser discutida, deve ser discutida no lugar próprio, com o presidente, no conselho de administração, no interior da estrutura dominante no futebol.

Quando um treinador de um grande clube, pago, volto a sublinhar, de acordo com a responsabilidade que assume, não deve, nunca, seja qual for a circunstância, considerar-se um mero empregado do clube, como se não lhe competisse acompanhar, defender, partilhar, ser solidário, com a administração da empresa que serve. Não tem de estar de acordo com tudo; pode e deve discutir seja qual for a decisão sobre a área que comanda; o que não deve é desresponsabilizar-se, quebrar a solidariedade institucional, comprometer as lições e a confiança.

NÃO quero dizer que os treinadores de FC Porto e Sporting tenham, nos casos referidos, ou noutros, comprometido seriamente o que deve ser a relação com a estrutura dirigente; mas creio que a feriram sempre que decidiram expor algumas diferenças ou sublinharem a condição de meros empregados. Nem os jogadores podem considerar-se meros empregados, quanto mais os treinadores.

Já o treinador do Benfica também me parece ter-se excedido sempre que decidiu referir-se como se referiu, por exemplo, a Grimaldo, quando sabe que Grimaldo está envolvido num difícil processo de renovação contratual com a SAD da Luz. Tem o treinador do Benfica todo o direito de elogiar e defender os seus jogadores; mas não deve o treinador do Benfica dar a ideia de se exceder quando não lhe diz respeito a estratégia negocial da entidade que o contratou, também, como me parece ser responsabilidade de qualquer treinador, sobretudo, de qualquer grande clube, para proteger as inevitáveis diferenças entre uma administração que olha para o todo do clube e o jogador que olha para o todo, sim, mas (legitimamente) da sua própria vida.

Como gestor de enorme responsabilidade, o treinador também passou, mais do que nunca, a ter de olhar mais para o todo do clube do que para o todo da sua individualidade. E é por isso que tem de ter muito cuidado com a forma como se defende sem fragilizar quem lhe paga. E bem!