O disfarce

OPINIÃO07.06.201904:00

O que mais me impressiona em Cristiano Ronaldo já não são obviamente os golos, embora a quantidade de golos e, sobretudo, a qualidade de alguns deles continuem a impressionar-me o suficiente. O que mais me impressiona é a vontade de ganhar que ele continua a ter aos 34 anos e depois de já ter ganho tudo aquilo que já ganhou. Cristiano Ronaldo já ganhou tanta coisa, tantos jogos, tantos títulos, tantas glórias, já alcançou tantos sucessos e já conquistou tantos predicados, e já ouviu tantos (e incontáveis) elogios e sobre ele já se pronunciaram tantos (e incontáveis) adjetivos, que ele, Cristiano Ronaldo, podia perfeitamente tirar o pé do acelerador que ninguém, a não ser por tremenda má-fé, poderia levar-lhe a mal. Mas ele não tira, essa é que é a verdade.

Cristiano Ronaldo que já tem mais de 150 jogos e mais de 80 golos pela Seleção Nacional, o Cristiano Ronaldo que já tem mais de 150 jogos e mais de 120 golos na Liga dos Campeões, mais de 430 jogos e mais de 450 golos no Real Madrid, quase 45 jogos e quase 30 golos pela Juventus, já para não falar dos mais de 300 jogos e mais de 120 golos que fez pelo Manchester United, e até os mais de 30 que ainda jogou pelo Sporting, o Cristiano Ronaldo que ao todo já fez quase 700 golos tem o direito, que diabo, de tirar um bocadinho o pé do acelerador e relaxar um pouco mais, dedicar-se mais a ligar o jogo dos mais jovens companheiros do que a resolver o que a equipa, como equipa, não vai conseguindo resolver.

Mas Cristiano Ronaldo é um monstro de competição. Só sabe jogar no máximo. Sempre com a mesma determinação. E a mesma vontade, defenda o clube ou defenda, como sempre defendeu, a Seleção Nacional, e é também por isso que parece impossível que alguém possa ter posto em causa o empenho de Cristiano Ronaldo quando ele pediu ao futebol de Portugal um curto período de dispensa.

O Cristiano Ronaldo das cinco Bolas de Ouro está afinal, e é bom que os portugueses não se deixem trair pela efémera memória do futebol, está aos 34 anos tão fresco como se tivesse 24, pelo menos no tal espírito ganhador, na ambição, na vontade de ajudar Portugal a conseguir mais sucessos, e ele próprio a fazer mais e mais e mais, e a ganhar mais, e a marcar mais golos, a desferir mais remates, com o pé direito, o esquerdo, de cabeça, de livre, penálti, pontapé de bicicleta, de moinho, com a bola mais ou menos parada, mais ou menos direitinha, mais ou menos a jeito de a rematar à baliza.

VEJAMOS, por exemplo, como fez Cristiano Ronaldo mais um hat trick, o sétimo na Seleção, na noite em que a Seleção Nacional foi quase sempre pior equipa que a Suíça mas teve, mais uma vez, sua excelência o melhor do mundo para a levar às costas e, levando-a verdadeiramente às costas, conseguir evitar um prolongamento que já parecia inevitável e uma sempre mais indesejável (e fortuita) decisão por grandes penalidades.  

Primeiro golo conseguido com aquele soberbo remate de livre direto, que deixou praticamente pregado à relva o bom guarda-redes suíço, um golo, no entanto, que (mera curiosidade) deixará de ser legal a partir da próxima época, uma vez que alteração da lei 13 passa a impor que os jogadores da equipa que beneficia do livre não possam estar a menos de um metro da barreira sempre que esta é formada por três ou mais jogadores. Desta vez, porém, ainda valeu, e de que maneira valeu o fortíssimo remate de CR7.

Segundo golo, na sequência de uma rápida construção atacante de Portugal, com Cristiano Ronaldo a rematar de primeira, na passada, como se diz na gíria do futebol, aproveitando excelente assistência de Bernardo Silva, que por seu lado aproveitou excelente abertura do miúdo Rúben Neves - ainda assim, de notar que a bola não saiu do pé de Bernardo Silva propriamente perfeita, chegou a Ronaldo um pouco aos saltos, e Ronaldo teve realmente de aplicar toda a técnica de remate para não falhar, como não falhou, o alvo.

Terceiro golo, obra e graça do espírito santo de Cristiano Ronaldo e da fantástica qualidade que tem como atacante e goleador, a deambular na frente do adversário, a ganhar o espaço que precisava e a rematar, já dentro da grande área, em arco, como ele tanto gosta e tão farto está de fazer.

Cristo Rei, como a edição de ontem de A BOLA tão feliz foi a chamar-lhe, tenta, na verdade, fazer quase sempre a mesma coisa quando chega àquela zona do campo, sobre a esquerda, e se aproxima da grande área, com a bola dominada - rompe para dentro, prepara a bola e remata com o pé direito, umas vezes mais em potência, outras mais em jeito. Quantos golos não fez Ronaldo já dessa maneira?
Umas boas dezenas, para não exagerar.
E não sabem os adversários o que ele faz? Sabem. Mas o que podem fazer? Nada.
Há coisas que Ronaldo faz que não dá mesmo para o impedir de fazer.
Os adversários sabem o que ele vai fazer, sabem como ele faz o que vai fazer, e… não conseguem impedi-lo.
Não dá mesmo!

Foi o caso do mais que perfeito terceiro golo de Cristiano Ronaldo na desinspirada noite da Seleção portuguesa no Estádio do Dragão, uma equipa que não foi capaz de se inspirar nem na estratégia, nem na tática, nem no talento visível mas desta vez demasiado discreto de duas estrelas do campeonato português - Bruno Fernandes e o miúdo João Félix -, nem no magnífico ambiente criado pelo estádio para receber esta nossa meia-final da Liga das Nações, recentemente criada pela UEFA, uma prova talvez muito mais justificada pelo aumento de receitas - da televisão e da publicidade - para a UEFA e pela sedutora distribuição de mais riqueza pelas federações, sobretudo pelas que tiverem, naturalmente, mais sucesso, do que pelo verdadeiro interesse desportivo.

A Liga das Nações será, no fundo, uma espécie de cenoura para as seleções europeias (e para os jogadores, porque os jogadores também ganham bom dinheiro nestas competições) nos anos ímpares, nos quais se jogavam até agora apenas encontros de qualificação para as grandes competições que continuarão, evidentemente, a ser o Campeonato da Europa e o Campeonato do Mundo, com as fases finais a realizarem-se, alternadamente, de quatro em quatro anos.
No caso de Cristiano, seja, porém, a Liga das Nações ou seja lá o que for, o que ele quer sempre é vencer e levar todos os outros a ter o mesmo espírito que ele tem de vencer.

ENQUANTO tiver este Cristiano Ronaldo a Seleção vai, certamente, poder continuar a disfarçar essa inquietante tendência para não conseguir apresentar o jogo que todos nós gostávamos que apresentasse, e que esperávamos que apresentasse de acordo com o lote de jogadores talentosos que tem.
É verdade que é a Seleção portuguesa a campeã da Europa, é verdade que vai ganhando; é verdade, como lembrou, e bem, o selecionador, que desde 2014 a Seleção apenas perdeu três jogos, dois no tempo regulamentar e um nas grandes penalidades; é verdade que vai voltar a jogar a final de uma competição - é a terceira final da história da nossa Seleção, duas das quais já na era-Fernando Santos -; é, portanto, verdade que a chamada equipa de todos nós vai conseguindo os objetivos. Mas, em todo o caso, pergunto: será que gostamos verdadeiramente do futebol que a Seleção joga?
Julgo que a resposta é incontornável: não!

Podemos gostar da forma como se bate, podemos gostar do espírito que mostra, podemos gostar da determinação e da garra coletiva que parece ser, desde sempre, imagem de marca desta Seleção que Fernando Santos conduziu, na realidade, à suprema glória europeia.
Mas não creio, com toda a franqueza, que alguém possa dizer que gosta do futebol que a equipa nacional joga na maioria das vezes.
O sucesso é o mais importante no futebol. Isso é inquestionável. É o resultado que faz a história e não a exibição mais ou menos bonita, mais ou menos agradável, mais ou menos espetacular. Mas não pode o futebol de uma equipa (seja ela qual for) ser medido apenas pelo sucesso. Não faria sentido. Não cuidar de jogar bem é negar o futebol porque o futebol é também espetáculo.
A Seleção vai ganhando mas não joga muito. E tinha obrigação de jogar mais. Muito mais!