Opinião O dia do treinador
Ser treinador exigiu-me mudança profunda do meu comportamento
INTEGRADO na Semana Europeia do Desporto, a Confederação de Treinadores comemorou o Dia do Treinador no passado dia 25 de Setembro. Uma celebração de âmbito europeu e mundial que pretende reconhecer socialmente a função de treinador. Enquanto ex-treinador profissional de basquetebol aqui deixo o meu contributo. No âmbito das equipas profissionais de basquetebol pelas quais fui responsável, ser treinador implicava trabalhar com um coletivo constituído por cerca de 20/25 pessoas (dos dirigentes ao roupeiro, dos treinadores adjuntos aos jogadores, do médico ao psicólogo e aos responsáveis pelo marketing e imagem, etc.). Mas não só, pois, por sua vez esse coletivo integrava-se num sistema muito mais vasto e composto pelo clube e respetivos adeptos, tal como os outros clubes que comigo competiam, associações regionais e Federação Nacional, Liga Profissional, Federação Internacional, órgãos de comunicação social, etc. O que significou que cedo aprendi que não era mais possível centralizar tudo o que dizia respeito à vida da equipa e, muito menos, ter capacidade de resposta individualizada para a imensidão e complexidade das questões que a cada momento se me colocavam.
SER treinador exigiu-me assim conhecimentos e competências que ultrapassavam em muito as aquisições da carreira que tive enquanto atleta ou a formação académica que recebi. Além dos conhecimentos técnico-táticos, necessitei adquirir um vasto conhecimento multidisciplinar. Um conjunto de habilidades próprias no âmbito das competências de ensino, para além de uma constante tomada de decisões no âmbito da planificação, organização e metodologias do treino, liderança, estilo e diferentes formas de comunicação com os jogadores, dirigentes, árbitros, jornalistas, etc. Opções estratégicas e táticas decorrentes da observação e análise do jogo, gestão das pressões contidas na competição, controle da capacidade de concentração e emoções, treino continuado das minhas inteligências social, emocional, espiritual e mental... A liderança que aprendi a exercer, requereu que enriquecesse a capacidade de comunicação entre os componentes da equipa, gerindo, dentro do possível, as suas reações emocionais e fazendo sistematicamente um esforço no sentido de corrigir as deficiências do seu comportamento que afetassem a eficácia das suas intervenções. Potenciei o interesse e a motivação dos atletas, acreditei nas suas capacidades e devolvi-lhes competências, atuando de acordo com a responsabilidade que me estava atribuída quanto à gestão da sua participação.
PERGUNTAVA-ME muitas vezes, deve o treinador tratar todos por igual? «Fair, but not equal» diziam-me, a esse propósito, alguns dos treinadores norte americanos com quem me relacionava. Ou seja, recomendavam-me que deveria tratar todos com justiça, mas nunca todos por igual. E a razão era simples. Como tratar todos por igual se uns se empenhavam e serviam a equipa, eram cumpridores das regras coletivas e se preocupavam com os companheiros e outros não? Tinha que haver uma distinção e um reconhecimento daqueles que mais o mereciam, comparativamente aos que procuravam sistematicamente sobrepor os seus interesses individuais aos coletivos. Além disso, fui percebendo que em termos da autoridade que buscava, ela necessitava ser reconhecida mais que imposta. Tal como se impunha ser capaz de conseguir que a disciplina requerida fosse assumida pelos jogadores, apelando à sua participação e responsabilização. Impunha-se envolver os jogadores com os objetivos coletivos, compatibilizando com o interesse coletivo as naturais ambições e expectativas individuais de cada um. Idem quanto a incentivar a criatividade e lutar contra o medo de errar. Cumpre ao treinador incentivar a criatividade dos jogadores, dar-lhes espaço para errarem e refletirem sobre os erros que cometem. Melhorar as suas competências por via de um continuado aprender a fazer, fazendo. Nunca esquecendo que ser criativo não pode representar perda de eficácia, ou desrespeito pelos princípios e regras que devem nortear a vida coletiva das equipas.
CRIATIVIDADE é acima de tudo ser capaz de inovar, mantendo a eficácia necessária para que hajam resultados e o rendimento esperado. Ainda o enorme desafio contido em liderar jogadores para que trabalhem em equipa. Que complexidade e exigência! Precisava convencê-los que através da equipa e do respetivo sucesso coletivo, cada um deles teria algo de significativo a ganhar. Tinha de conseguir fazê-los interiorizar que, contribuindo individualmente para que o todo fosse maior que a soma das partes, retirariam daí o retorno positivo que almejavam. Como consegui-lo? Potenciando a mobilização das vontades individuais ao serviço do coletivo. Se nunca os abandona a motivação respetiva, na defesa dos interesses individuais, então teria de ser capaz de conseguir que, atingindo a equipa os seus objetivos, cada um dos jogadores ganhasse com isso algo de significativo. Se cada jogador era tão sensível ao facto de ter de ganhar algo sempre que se entregasse ao coletivo, cumpria-me ser capaz de me ajustar às diferenças que revelavam, ver a minha autoridade reconhecida mais que imposta e possuir em cada momento da vida das equipas que dirigia, uma visão clara do que pretendia alcançar a nível individual e coletivo. Tinha forçosamente de me adaptar e conseguir potenciar os constantes fluxos e refluxos motivacionais provocados pelos egoísmos dos jogadores, na busca de uma fundamental coesão de processos e de uma necessária relação social e identificação coletiva. Uma sincronização dos movimentos coletivos e individuais e uma clara definição e coordenação de tarefas de cada jogador. Profundos laços sociais e afetivos, potenciando uma cooperação e entre ajuda sem reservas de qualquer espécie. Um alinhamento claro de todos os jogadores ao serviço dos objetivos coletivos a atingir e fortes sentimentos de orgulho de pertença à equipa.
TODOS os jogadores que conheci (naturalmente uns mais que outros!) debatiam-se entre afirmarem-se individualmente e o prazer de fazerem parte de uma equipa com a qual se sentissem envolvidos. O que, em complemento do que já ficou dito atrás, permite concluir que reside nesta aparente contradição um dos mais apaixonantes aspetos de tudo o que diz respeito a ser treinador. Por um lado, temos de assumir o humano egoísmo dos jogadores, pelo outro, pugnamos pela construção de um coletivo que os complemente e dê espaço quanto baste para, através dele, se afirmarem individualmente. Mas entre os jogadores que fizeram a diferença para melhor, destacavam-se os que sabiam utilizar a equipa e os seus resultados como uma oportunidade de afirmação e desenvolvimento pessoal. As competências comportamentais desses jogadores e a forma como se relacionavam com os restantes, foram atributos que os distinguiram no modo como contribuíam para a equipa sem nunca se deixarem diluir totalmente no interesse coletivo. Eram maduros, seguros, confiantes, preocupados com os outros, sempre capazes de estabelecerem laços de confiança com todos os que os rodeavam. Geriam bem as suas emoções sob pressão, contribuíam pela positiva para o desenvolver de dinâmicas na equipa ao serviço do aumento da respetiva eficácia. Tinham uma constante atitude positiva e influenciavam a equipa de modo marcante. E sabem o que de mais interessante pude descobrir nesses jogadores? Todos tinham recebido influências positivas profundas através da respetiva educação familiar e escolar, o treino a que os treinadores os haviam sujeito enquanto jovens, a motivação e a liderança de que foram alvo em diferentes circunstâncias das suas vidas.
POR sua vez, em termos coletivos, onde registei diferenças no que respeita às equipas com que alcancei sucesso? As diferentes personalidades nelas existentes, complementavam-se e completavam-se. Nelas existiam afinidades que lhes potenciavam as ações em comum, funcionando quase sempre numa simbiose perfeita entre estarem focados nas tarefas e nos objetivos comuns a alcançar e, em simultâneo, estabelecerem fortes laços de inter-relação social. Demonstravam índices de coesão acima da média e davam respostas diversificadas às naturais dificuldades impostas pelo confronto com a realidade. Formar e preparar equipas vencedoras foi naturalmente um dos meus objetivos ao longo dos anos. E para o conseguir, fui percebendo, a partir de uma certa altura, que me eram exigidas capacidades extremamente exigentes. Sem abdicar de ser claro e firme na explanação dos princípios norteadores do funcionamento das equipas com que trabalhava, os jogadores deveriam ser capazes de se apropriarem responsavelmente desses princípios e assumir criativamente as suas respostas para cada uma das situações complexas com que se deparassem.
SER treinador exigiu-me uma mudança profunda do meu comportamento. Quem joga são os jogadores e não o treinador, razão porque tive de assumir como objetivo principal que os jogadores fossem autónomos e capazes de se autodisciplinarem, automotivarem e autoprepararem! O verdadeiro segredo do sucesso que perseguia, necessitava como suporte de um espaço de saber e de intervenção que me diferenciasse dos jogadores e dos dirigentes. E foi isso que a partir de certa altura persegui com afinco. Tal como aprendi com os anos que não há qualquer aparente contradição entre a necessidade que o treinador tem de legitimar e valorizar a sua função e a perceção gradual que vai adquirindo ao longo do tempo que o rendimento da sua equipa, num certo sentido, melhora quanto mais os jogadores menos dele precisem!