O desafio de Schmidt

O desafio de Schmidt

OPINIÃO22.04.202306:30

Nem sempre se consegue que os jogadores assumam como seus os objetivos do treinador

N A liderança de uma equipa de alto rendimento, desportivo ou empresarial, está sempre presente um enorme desafio. Se ainda existissem dúvidas acerca deste tema, veja-se o que nos últimos dias tem vindo a acontecer com o treinador Roger Schmidt, da equipa de futebol profissional do SL Benfica.

Aliás, não só com ele! Quem leia jornais desportivos, ouça canais de rádio ou veja televisão, constata quanto quase todos os treinadores da nossa Liga profissional de futebol são obrigados a tomar posição acerca dos resultados em curso; uns pela positiva, outros pela negativa. Alguns em entrevistas de fundo, outros em declarações pré-competitivas. O que nos permite colocar uma questão muito interessante.

Qual é (afinal!) o grande desafio com que se depara um treinador profissional? Melhor dizendo, quais são os muitos e complexos desafios com que se confrontam semanalmente a generalidade dos treinadores profissionais de futebol ao mais alto nível competitivo?

Antes do mais, o facto de nem sempre se verificar na sua realidade competitiva o que anunciam previamente ir acontecer. Uma coisa é o que dizem e pensam estar a acontecer na sua equipa em cada momento. Outra, os resultados que vão alcançando quantas vezes até bem contrários ao que expressaram na antevisão competitiva.
Razão? Antes de tudo o mais porque, como quem joga são os jogadores e não os treinadores, nem sempre o treinador consegue que os jogadores assumam como seus os objetivos do treinador. Uma questão de liderança, obviamente, mas principalmente de impacto comunicacional.

Esclareço. Tudo começa por, apesar de muitos ainda assim o imaginarem, ser treinador profissional não é só uma questão de alcançar os resultados com que se compromete. Para além dos resultados positivos que todos perseguem, precisam respeitar que a todos se impõe igualmente deixarem ao longo do seu exercício uma herança positiva de melhores jogadores, equipas e clubes.

O que obriga desde logo a assumir que não é uma questão possível de se resolver simplesmente através da aquisição de um imenso saber (técnico, tático, operacional) e de querer (muito!) ter sucesso!

Algo têm de fazer cujo impacto emocional nos jogadores mobilize a respetiva motivação e capacidade de superação. Principalmente, insisto, que os jogadores sintam os objetivos do treinador como igualmente importantes para si próprios.

Cada um dos jogadores (suplentes inclusive!), tal como os respetivos dirigentes, precisam sentir (e acreditar!) que os resultados positivos da equipa são muito importantes para o seu futuro individual e coletivo!

Para o conseguir, precisa o treinador de mobilizar-lhes a motivação, alimentando-lhes a capacidade de se superarem, de se concentrarem nas tarefas, de se apaixonarem pelo que fazem, de se sentirem apoiados e emocional, social e espiritualmente mobilizados!

O que só será possível de alcançar por treinadores capazes de, na presença daqueles que treinam, se mostrarem exemplares quanto à sua capacidade de superação, ao seu foco no trabalho que desenvolvem, ao entusiasmo que revelam todos os dias e à sua preocupação constante em serem, simultaneamente e consoante necessário, exigentes e compreensivos.

Mas atenção! Ninguém influencia e persuade os outros sendo um mau exemplo daquilo que sabe que tem de exigir e, nomeadamente, sendo aquilo que vulgarmente designamos como mau carácter!

Resumindo, no que respeita à liderança de jogadores e equipas profissionais, está hoje absolutamente comprovado que os treinadores necessitam de:

- conviver de forma positiva com as suas emoções e potenciarem as daqueles com quem trabalham. Exige-se-lhes conseguir que os jogadores percam os medos de errar, de falhar, de fazer diferente, etc, que tanto condicionam o seu processo de tomada de decisão;

- controlar a ansiedade que esses medos habitualmente provocam em si próprio e nos jogadores. Afinal, urge que aprendam (treinem) a serem capazes de explorar tudo o que é novo e diferente e que eventualmente os retira da zona de conforto;

- mobilizar a capacidade de superação dos jogadores com quem trabalham, não sendo suficiente geri-los operacional e racionalmente;

- influenciar a criação de um clima de trabalho coletivo emocionalmente positivo, estabelecendo regras comportamentais que permitam capitalizar as emoções positivas entretanto emergentes. Também, ajudando a criar maior sensibilidade para com as emoções individuais e sua respetiva aceitação e integração na dinâmica coletiva da equipa;

- estarem atentos de forma continuada ao emergir nas suas equipas determinadas reações individuais negativas (ansiedade, egoísmo, frustração, inveja, etc), que afetam profundamente as inter-relações que se estabelecem entre os seus membros, assim como a respetiva coesão e desempenho. A propagação viral destas emoções negativas (este contágio emocional) justifica uma continuada regulação;

- assumirem que, além da técnica, da tática, da preparação técnica e condicional, lhes é exigido preparar uma equipa e respetivos jogadores em permanentes cuidados intensivos relativos à sua inteligência física (destreza motora), à sua inteligência mental (foco e concentração nas tarefas), à sua inteligência emocional (controlo da ansiedade e empatia individual e coletiva), à sua inteligência espiritual (disponibilidade para se superar) e inteligência social (empatia e capacidade de contribuir para um todo maior que a soma das partes).

H OJE, e perante a atual realidade científica e filosófica, já não faz sentido ver que alguns treinadores persistem em defender que existe um suposto abismo entre o corpo e a alma ou a matéria e o pensamento. Tal como também não se justifica apontar que o que mobiliza exclusivamente a motivação dos jogadores seja só o efeito que produzem a distinção/recompensa ou o castigo. Impõe-se juntar-lhes o efeito bastante mobilizador para qualquer ser humano do aprender a fazer, fazendo, do aprender com os erros cometidos, do experimentar, do vermo-nos envolvidos e responsabilizados, do sermos chamados a participar e a dar o nosso contributo...

A constituição genética dos seres humanos, sendo influente, não é tão decisiva quanto num determinado momento chegou a ser considerado. Ao comportarmo-nos de determinada forma, mais otimista ou pessimista, mais agressiva ou passiva, mais lúdica/curiosa ou indiferente, empática ou desligada, fazemo-lo com base em algo mais que a base genética com que nascemos.

O meio ambiente influencia-nos de modo fundamental (tal como nós também o influenciamos!), condicionando-nos naturalmente. Somos, obviamente, influenciados pelos genes com que nascemos, mas também (e de forma muito incisiva!) por tudo aquilo que nos vai acontecendo até atingirmos a puberdade. Influenciados pelas experiências sociais que vamos vivendo, as respetivas interações e relações com os outros, têm enormes efeitos no nosso comportamento. A essência da nossa vida e o seu suporte, baseiam-se em interações constantes e para sermos felizes não dependemos só de nós, mas também dos valores vigentes no coletivo em que nos integramos e das relações com aqueles que nos rodeiam.

Importa assim conseguirmos ir bem mais além dos lugares comuns habituais relativos às nossas dependências dos genes, da alimentação, da saúde, do trabalho, pois na realidade a nossa dependência vai muito para além disso, uma vez que dependemos imenso da organização social em que estamos inseridos.

Sem invalidar que um indivíduo que tem consciência de si próprio (autoconhecimento), consegue gerir melhor as suas emoções e potenciar as dos que o rodeiam, movemo-nos, vemos, falamos, ouvimos, sentimos, através de redes de circuitos cerebrais (neuronais) que, trabalhando em equipa (com enorme complementaridade), conseguem que nos comportemos da forma que o fazemos todos os dias, sempre influenciados pelo meio ambiente em que nos inserimos.

Possuímos circuitos neuronais extremamente dinâmicos e plásticos, naturalmente possíveis de modular através da continuada aquisição de hábitos comportamentais a que estamos sujeitos. A nossa conduta diária é acima de tudo ditada de forma inconsciente, através de hábitos previamente adquiridos, expressando-nos emocionalmente com ansiedade, medo, pena, asco, surpresa, desprezo, amor...

Enquanto seres humanos, temos emoções que se entrelaçam de modo continuado, sendo hoje um dado adquirido que nos recordamos de forma muito mais clara dos acontecimentos que mais nos marcaram de um ponto de vista emocional. Tal como hoje também já não existem dúvidas acerca do que aprendemos e memorizamos através do sono e dos sonhos, pois quando dormimos e sonhamos recordamos a atividade neuronal anteriormente experimentada.

Por fim, uma curiosidade. Está hoje perfeitamente esclarecido que existe uma diferença evidente no que respeita à empatia masculina e feminina. Entendida a empatia como a capacidade de reconhecer as emoções e os pensamentos daqueles com que nos relacionamos, as treinadoras intuem muito mais facilmente que os treinadores essas emoções transmitidas por determinadas manifestações corporais, ou expressões faciais. Aliás, o que constitui uma aprendizagem quase diária de todos nós, homens, quando por vezes apresentamos à nossa companheira um amigo recente que tanto nos entusiasmou e recebemos aquela resposta fria e contundente «se fosse a ti, não me fiava muito nele»…