O ‘crime’!

OPINIÃO31.12.202106:00

Se aconteceu o que se diz que aconteceu então o Benfica estará bem pior do que se pensava

JESUS viveu no Sporting um motim com adeptos, mas no Benfica terá vivido (ainda não desmentido) uma espécie de motim com jogadores. O que é muito diferente. Mais diferente ainda: no Sporting, muitos dos adeptos foram condenados e outros viram as penas suspensas pelo motim que organizaram, mas no Benfica nenhum jogador foi, até agora, responsabilizado pelo que pode ter sucedido. E das duas uma: ou é tudo mentira, e nem Pizzi teve comportamento assim tão incorreto nem qualquer dos seus companheiros «recusou» treinar-se, ou então, é absolutamente incompreensível, para não dizer outra coisa, que os responsáveis do Benfica tenham deixado sem o mínimo processo disciplinar todos aqueles (muitos ou poucos, para o caso é indiferente) que alegadamente terão posto em causa, na última segunda-feira, a autoridade do treinador.

Vamos por partes: Pizzi teve ou não um comportamento incorreto no final do FC Porto-Benfica de dia 23, no Estádio do Dragão? Pelas informações que chegaram a Jesus (que não assistiu a nada), parece que teve. E se Jesus o considerou (confiando nas informações que recebeu) foi certamente por isso que decidiu que o melhor seria Pizzi não se treinar na segunda-feira até que o assunto fosse mais bem discutido e esclarecido.

Pizzi é um dos capitães de equipa, é um dos jogadores do plantel há mais anos no Benfica, é, certamente, um dos mais bem pagos, tem, por isso, mais responsabilidades do que outros, e, portanto, está naturalmente mais sujeito ao escrutínio dos responsáveis. Uma atitude mais irrefletida, mais quente, porventura mais incorreta e agressiva ganhará, no caso de Pizzi, uma dimensão amplificada. Não se sabe, em bom rigor, se foi o caso. O que se sabe é que pode ter sido assim que chegou a Jorge Jesus.

Seja como for, e enquanto autoridade máxima na gestão da equipa de futebol, entendeu o treinador que a melhor decisão seria a de afastar Pizzi do treino de segunda-feira. Não se sabe por quanto tempo quereria Jesus que Pizzi ficasse posto de lado, não se sabe que medidas quereria Jesus tomar a seguir, não se sabe que conversa voltaria a ter com Pizzi, nem se sabe, na verdade, o que faria Jesus chegar ao presidente. Sendo evidentemente legítima a decisão do treinador, o caso só podia, parece-me, conhecer dois desfechos: ou a instauração de um processo disciplinar a Pizzi (que procurasse apurar rigorosamente tudo, castigando ou absolvendo, no fim, o jogador) ou uma conversa suficientemente esclarecedora entre todas as partes que permitisse pôr uma pedra sobre o assunto.

O que alegadamente se seguiu (tornado público e não desmentido pelas autoridades do Benfica) não podia ter sido pior: jogadores (pelo menos alguns) a tomarem a defesa imediata de Pizzi e a porem em risco a realização do treino. E se assim foi, em rigor, como pode a autoridade benfiquista ter reagido como parece que reagiu? Como podem os jogadores amotinados passar impunes? Como não há lugar a um único processo disciplinar? Jogadores dispõem-se a pôr em causa o treino e não se passa rigorosamente nada a não ser, por fim, menos de 24 horas depois, a decisão do treinador pedir ao presidente para o deixar sair?!

Creio que Jesus não tomou a decisão que tomou por causa de Pizzi, ou do que sucedeu com Pizzi, ou do que possa ter sucedido com mais alguns jogadores. É minha convicção que Jesus pediu a Rui Costa para sair porque o copo ficou cheio. E o copo não encheu de repente. Foi enchendo. E não encheu por causa da «novela Flamengo». Já vinha enchendo há muito. E teve, talvez, o seu ponto mais intenso, para Jesus, quando chegou ao relvado da Luz antes de começar o jogo com o Dínamo Kiev, e foi forte e duramente assobiado, na noite em que o Benfica só jogava uma importantíssima qualificação para os oitavos de final da Liga dos Campeões.

Jesus, volto a escrevê-lo, nunca deveria ter recebido dirigentes do Flamengo como recebeu, a dias do FC Porto-Benfica. Mas não se queira fazer disso a razão do incêndio. Nem foi razão, quanto mais principal. Sim, Jesus não deveria ter recebido os dirigentes brasileiros, fosse sob que pretexto fosse, porque era inevitável ver essa decisão poder tornar-se, como se tornou, numa espécie de gota de água para a opinião do público do Benfica e fortemente aproveitada por muitos dos seus maiores críticos na opinião falada e publicada. No limite, Jesus poderia ter falado por telefone com Marcos Braz e Bruno Spindel (os responsáveis do Flamengo), mas nunca poderia correr o risco de ver, como viu, ser tornado público um encontro que tinha tudo para ser polémico. 

VOLTO ao caso Pizzi para sublinhar que ver adeptos, visivelmente insatisfeitos com o treinador destituído, considerarem Pizzi e alguns dos companheiros como «heróis», ainda se percebe, porque dos adeptos espera-se sempre mais emoção do que razão; mas que a autoridade do clube pareça ver como absolutamente normal que jogadores possam, sem consequências, pôr em causa a autoridade do treinador, bom, por mais voltas que dê, não consigo, com toda a franqueza, compreender. E muito menos aceitar.

Se no Benfica se aceita que os jogadores possam rebelar-se contra o treinador, pois então que se preparem: não apenas perdem autoridade como, que me lembre, abrem precedente inédito, além de profundamente perigoso.

Se foi assim que tudo aconteceu, ganha, inevitavelmente, mais credibilidade até a ideia de comportamentos semelhantes terem, realmente, ocorrido no passado e criado problemas (porventura, igualmente fatais) a treinadores como Rui Vitória ou Bruno Lage. Se não foi assim, então teremos de esperar por próximos capítulos para melhor se perceber tudo o que se passou.

Quanto a Jorge Jesus, julgo que fez bem em propor a saída por sentir a evidente falta de condições para cumprir, como desejava, o contrato com o Benfica. Agora que terá tempo para refletir, creio que pode lamentar muita coisa. Uma boa parte, naturalmente, da sua responsabilidade, outra das circunstâncias que foi encontrando, outra ainda das pessoas com quem trabalhou, sejam eles jogadores, elementos do staff diretamente ligado ao futebol profissional ou mesmo da administração. No futebol, o insucesso nunca se deve apenas a uma pessoa, por muito que queira dar-se a ideia de Jesus ser o único responsável (ou culpado) de tudo o que de mau sucedeu ao Benfica no último ano e meio.

Mais do que avaliar o trabalho de Jesus, porém, mais do que perceber porque quase nunca foi o Benfica capaz de jogar aquele futebol que se acreditava que jogaria com Jesus, mais do que concluir que talvez Jesus nunca tenha sido capaz, na realidade, de se ligar pelo discurso, de novo, aos adeptos e a todos aqueles que mais desconfiavam deste regresso à Luz, mais do que perceber o que devia Jesus ter dito e não ter dito ao longo desta caminhada, o que devia ou não ter feito, o que devia ou não ter imposto e não cedido, mais do que tudo isso, repito, julgo que valeria a pena refletirmos um pouco sobre o ódio que parece destilar-se, um pouco por todo o lado onde se faz opinião, contra um profissional de futebol que, com todos os seus (mais ou menos evidentes) defeitos e erros cometidos, não apenas não apontou pistola a alguém para regressar ao Benfica, como nunca deixou, certamente, de dar o seu melhor em defesa da equipa e do sucesso do clube da Luz.

O que parece fazer-se a Jesus são permanentes processos de intenções e ataques de caráter, como se Jesus tivesse cometido um crime por voltar à Luz e fosse, mais do que um treinador eventualmente indesejado por adeptos e crítica, uma espécie de satanás para o Benfica.

Jesus aceitou regressar e parece ter ficado, mais uma vez, grato a Luís Filipe Vieira por lhe ter proporcionado o regresso. Talvez por isso, julgo que aceitou o que talvez noutras condições não teria aceitado, quer no que diz respeito a jogadores, quer a estrutura - mas isso, agora, são contas de outro rosário.

Jesus não cometeu, pois, um crime. Pode, quando muito, ter cometido um erro. Tal como o Benfica. Não mais do que isso. Jesus estava bem, no Brasil, ao contrário do Benfica, que estava de novo mal quando o foi desafiar. Agora, longe do sucesso, todos devem assumir responsabilidades, mesmo ficando por se saber se poderiam ainda vir a ganhar alguma coisa.

No cenário montado, na atmosfera e no clima que o Benfica também foi permitindo que se criasse à volta de Jesus - não defendendo, a tempo e convenientemente o treinador - pelo silêncio ensurdecedor de responsáveis e pelo ruído cada vez mais intenso e audível de adeptos e críticos, dentro e fora da Luz, dificilmente o Benfica de Jesus poderia aspirar a ganhar alguma coisa. Sem forte coesão, podem ganhar-se jogos, mas não se ganham títulos.

Jesus é grande treinador a quem, desta vez, nada correu bem. Por culpa própria, mas também por culpa de jogadores e por culpa da estrutura do clube. Parece-me, também, que foi alvo, que me lembre, da maior campanha alguma vez vista em Portugal contra um profissional de futebol. Fez bem, pois, em sair. É seguramente melhor para ele. E pela atitude vista ontem, no Dragão, talvez tenha sido realmente melhor também para a equipa!!!