O 'Canetas' deixou-nos...
Miguel, o 'Canetas', um amigo que partiu cedo demais e que gostava que tivessem conhecido... Meu parceiro de guitarradas...

OPINIÃO O 'Canetas' deixou-nos...

São as histórias que contamos, e não as lágrimas que vertemos, que validam o impacto que os outros têm na nossa vida... Em especial quando partem. Eu sou o Jorge Pessoa e Silva e esta é a crónica das quintas-feiras do meu Livro do Desassossego .

O Miguel era brisa a deixar perfume por onde passava. Fazia do acolhimento uma arte, um lugar seguro onde todos se sentiam confortáveis. E tinha um coração tão generoso quanto frágil. A notícia de que nos tinha deixado explodiu em ondas de choque no grupo do Whatsapp de antigos seminaristas salesianos. O nosso Canetas, como era conhecido no seminário, já não vai estar a meu lado, de viola na mão, a animar o próximo encontro anual.

Foram 38 anos sem saber do Canetas até ao reencontro de grupo em Agosto do ano passado. Mesmo sem sabermos uns dos outros durante mais de três décadas, a ligação criada quando éramos adolescentes, em Poiares da Régua, Mogofores (Anadia) e Porto, provou ter sido forte pela ilusão de estarmos a retomar conversas deixadas a meio na véspera… O Miguel recebeu-me de braços abertos, tocou viola comigo e uniu o elo que une as grandes amizades.

Não cabia mais uma pessoa na Igreja de São Jorge, em Vila Real. Despedida sentida por um mar de gente, todos com um bom motivo para gostar do Miguel. Sei que no próximo encontro, em Maio, vamos todos falar muito do Canetas. Vamos rir, seguramente, vamos emocionar-nos também. O Miguel ajudou-me a perceber que o impacto que alguém provoca nas nossas vidas, mais do que em lágrimas, se mede na quantidade de histórias que recordamos com saudade. Em maio, lá estaremos, antigos companheiros de vida, a contá-las. Obrigado, Canetas. Por tudo.

Já o João Diogo era mais um vento forte que se fazia notar por onde passava. Gargalhada fácil, extrovertido, excelente comunicador, profundamente apaixonado pelo que fazia e por África, a quem dedicou décadas como jornalista. Um daqueles jornalistas à moda antiga, para quem antes de saber de jornalismo é essencial saber sobre a vida e sobre as pessoas. Para quem a curiosidade é um gatilho, a conversa é um culto e o mundo é um palco de grandes histórias.

Quando comecei a minha carreira, sempre olhei para os mais velhos com profunda admiração. Foram horas sem conta a ouvi-los falar. Não de jornalismo, mas da vida. Das viagens que fizeram. Das aventuras. Das comidas que provaram. Dos hábitos que partilharam nos quatro cantos do mundo. Percebendo que o que nos liga a quem nos lê, a quem nos ouve ou a quem nos vê vai muito além da qualidade técnica do que fazemos. A ligação é emocional e depende do quanto de nós e das nossas experiências partilhamos com quem generosamente nos segue.

Falámos muitas vezes de África, paixão que partilhamos. O João Diogo não me vai levar a mal por revelar as últimas mensagens que trocámos, onde revelava o profundo orgulho que ele sentia pelo filho João Diogo Manteigas e do sonho que alimentava de o ver eleito presidente do Benfica dentro de um ano.

Regresso hoje ao fim de duas semanas de férias. Marcadas por duas despedidas. Pensei muito mais na vida do que no desporto. Percebo melhor que a minha imortalidade depende muito mais do que der aos outros do que dos meus êxitos pessoais. E que, um dia, mais do que lágrimas pela minha partida, gostava mesmo que contassem histórias sobre mim. Que se rissem das minhas trapalhadas e parvoíces, até da história de andar com ténis de pares diferentes, trocar os nomes às pessoas ou ter entrado num carro errado, por distração pura, e quase ter arrancado com uma criança lá dentro..

Riam muito, mas, acima de tudo, sonho que digam de mim que fui um homem bom.