Quenda, o leão balanta
Geovany Quenda
Foto: IMAGO

OPINIÃO Quenda, o leão balanta

Daqui a 50 anos, quando Quenda já for velho, os meninos guineeses vão pedir-lhe que conte de novo a história do leão que escorraçou os ricos caçadores ingleses… Eu sou o Jorge Pessoa e Silva e esta é a crónica semanal do meu Livro do Desassossego.

A 5 de novembro de 2074, talvez Geovany Quenda esteja sentado junto às margens do Rio Mansoa, encostado num tronco largo e protegido pela copa ampla de uma Pilon. Um grupo de crianças, ao reconhecer o velho Quenda, interrompe o jogo de futebol para lhe perguntar: «Papá, conta-nos outra vez como foi…» Sentadas em redor do mais velho, ouvirão pela enésima vez, embevecidas, a história de um leão que defendeu a morança de Alvalade com unhas e dentes e escorraçou um grupo de caçadores ingleses, ricos e muito bem armados.

A 5 de novembro de 2074, a história também será contada, com as naturais adaptações culturais, nas margens do Lago Malaren, Estocolmo; junto às Fuente de los Candados, em Montevideu, onde os apaixonados prendem cadeados com juras de amor eterno; no Travbaneparken, parque de Kastrup, Dinamarca; ou no Miradouro do Cruzeiro, de onde Vidago ganha ainda maior esplendor. Mas regressemos à Guiné Bissau, onde nasceu o mais jovem dos leões que, terça-feira, foi parte importante num jogo épico. Daqueles que, sabemos mal acaba, será para sempre contado vezes sem conta, em especial por quem o jogou e por quem assistiu ao vivo, numa corrente quase mística, entre relvado e bancada, com a cereja de ter sido uma perfeita despedida de Rúben Amorim de Alvalade. Estava escrito.

Quenda é, aos 17 anos, um legítimo herdeiro da etnia balanta, que significa «aquele que resiste». Conta a lenda que junto ao rio Mansoa vivia um espírito maligno que invejava a felicidade dos balantas. Um dia, o espírito fez transbordar a água do rio, destruindo as casas e inundando as plantações. Os balantas foram obrigados a abandonar as suas terras e a espalharam-se pelo Mundo. Um dos descendentes balanta chegou a Portugal ainda criança e aos oito anos foi visto a treinar por Basaúla, antigo jogador. A qualidade saltava à vista e Basaúla convenceu o pai a que jogasse no Damaiense. Até ao Benfica foi um pulo. Anos mais tarde, uma alegada promessa não cumprida pelas águias de que teria quarto no Seixal foi o rastilho para que se mudasse para o Sporting. Onde o jovem balanta cumpriu o fanado, a cerimónia tradicional de transição para a maioridade. Só não foram dois meses numa floresta a aprender os grandes segredos da vida balanta, mas a Academia de Alcochete.

Na cultura balanta, o «eu» não faz sentido. Na comunidade todos são iguais. Não existem heróis, existe heroísmo. A organização dos balantas e a sua força brotam precisamente dos princípios de igualdade, solidariedade e unidade. E é este conceito que vejo nas atitudes e no discurso de Quenda, que acredito ser muito mais profundo do que o lugar comum. A comunidade balanta é, por isso, muito pouco hierarquizada. Liderança apenas a voz respeitada dos mais velhos da comunidade. Os conselheiros. E foi isso que Quenda viu em Rúben: não o chefe, mas o mais velho, o conselheiro, como já tinha visto em Basaúla, que assumiu o acompanhamento de Quenda quando o pai deste emigrou de novo, agora para França, e deixou o filho a lutar por um sonho.

Gosto deste miúdo. Um leãozinho com atitude, destemido, qualidade e culturalmente humilde. Notável como não tremeu e foi um verdadeiro leão frente ao Man. City. Só tem 17 anos.

Agora, só o imagino Quenda a dançar Kussundé, celebrando mais uma grande colheita… Dança, Quenda, dança…