A Xana está viva!
Luis Enrique com a filha Xana... (Imago)
Foto: IMAGO

OPINIÃO A Xana está viva!

O dia em que o intratável Luís Enrique me emocionou ao falar sobre a morte da filha Xana... A minha faz hoje 22 anos... Eu sou o Jorge Pessoa e Silva e esta é a crónica semanal do meu Livro do Desassossego.

Dizem que não existe dor maior do que perder um filho. Num documentário que estreou na Movistar+, Luis Enrique, treinador do PSG, foi questionado sobre essa dor. Que sentiu em 2019 quando perdeu a filha Xana, de 9 anos, vítima de osteossarcoma, uma forma de cancro dos ossos. A resposta do treinador espanhol começa com uma pergunta: considero-me um felizardo ou um desgraçado? «Um felizardo, muito felizardo», garantiu, num testemunho de 69 segundos que me emociona profundamente.

«A minha filha veio viver connosco nove maravilhosos anos. Guardamos milhares de memórias dela. Ela está viva, espiritualmente, todos os dias falamos dela, rimo-nos das coisas dela», conta Luis Enrique com uma dignidade e serenidade absolutamente desconcertantes. E termina com uma questão que me perturba: «Acredito que ela nos está a ver, logo, o que quero que a Xana pense sobre a forma como estamos a viver isto?»

Dou por mim a pensar que a dor gera ressentimento para depois dele se alimentar, num ciclo vicioso que, depois, se alimenta de nós, bloqueando a felicidade que devemos assumir como dever maior. Dou por mim a pensar que continuamos a preferir quantidade a qualidade, nove anos podem valer bem mais do que 3285 dias. Dou por mim a repetir Saramago, para quem, como já aqui escrevi, o contrário de viver é esquecer, não é morrer. Dou por mim a pensar se é dor maior perder um filho de nove preenchidos e felizes anos ou ter um filho de 40 anos, por exemplo, a quem um pai chama de estranho.  Dou por mim a pensar que só o amor cura. Só o amor é vida.

Dou por mim a ler o poeta algarvio António Ramos Rosa, que faria precisamente hoje 100 anos:

«Ainda que a noite pese séculos sobre as costas

E a aurora indecisa demore

Mão posso adiar para outro século

A minha vida nem o meu amor

Nem o meu grito de libertação.

Não posso adiar o coração.»

Dou por mim a pensar que acusei Luis Enrique de arrogante quando, recentemente, destratou uma jornalista que lhe perguntou sobre o que pretendia com a tática usada no jogo pelo PSG e o treinador respondeu que não explicava porque a jornalista não iria entender. Afinal, qual o verdadeiro Luis Enrique? O arrogante e por vezes intratável ou o pai que me emociona profundamente? Ambos são verdadeiros, porque cada um de nós é anjo e diabo. Os melhores de nós são os que conseguem calar o segundo. Sabendo também que importante é perceber a diferença entre feitio e caráter.

Dou por mim a pensar que a minha filha faz hoje 22 anos. Sinto-me um felizardo. Só não consigo deixar de me sentir culpado por acreditar que tive mais sorte com a filha que tenho do que ela com o pai que tem. Amo-te Joana, perdoa-me as muitas vezes que não te disse que tenho muito orgulho na mulher que és.

PS – Dou por mim a pensar que tenho saudades de Mário Wilson. Faria hoje 95 anos. Fino trato, sentido de humor, muito humanismo. Deu-me entrevistas deliciosas, deu-me o privilégio de me achar piada e gostar de mim. Tudo o que fazia e dizia deixava no ar um cheiro intenso a perfume. Bem haja, Velho Capitão.