'Memórias de Vítor Cândido': Aveiro é... Mário Duarte
O meu último jogo no velhinho Mário Duarte foi a 30 de março de 2002, no Beira-Mar-Farense (2-1). Dei o melhor em campo a Juninho Petrolina. Foi pela Páscoa, no sábado de aleluia.
Sporting e FC Porto disputaram no sábado a Supertaça Cândido de Oliveira, no Estádio Municipal de Aveiro. E sempre que há um jogo em Aveiro logo me vem à ideia o velhinho Estádio Mário Duarte, que, durante 85 anos, foi casa do Sport Club Beira-Mar. Desde a sua construção, em 1935, até à demolição, ocorrida em 2020, para ampliação do hospital Infante D. Pedro. Ficava ali no coração da linda cidade da ria, no Parque Municipal, espaço romântico, idílico, com lagos e belos jardins, zonas de lazer e recreativas. Por lá passaram avós, pais, filhos e netos a cultivar a mística do clube mais representativo de Aveiro. O velhinho Mário Duarte foi palco de grandes jogos da Liga, onde os poderosos, Sporting, Benfica e FC Porto, passaram dificuldades e tantas vezes saíram derrotados. Assim desapareceu um rico pedaço da história do futebol português.
As minhas memórias do Estádio Mário Duarte remontam a 1976 quando fui ter com o mestre Fernando Vaz ao Hotel Arcada, em Aveiro. Era o treinador do Beira-Mar e levou-me a ver o estádio, em pleno parque da cidade. Já o conhecia quando era treinador (campeão) do Sporting. Era um gentleman, grande senhor do futebol, admirado e respeitado por todos. E grande amigo do chefe Vítor Santos, do jornal A BOLA, onde também colaborava como cronista de jogos. A partir dos anos 80 fui muitas vezes destacado para fazer jogos no Mário Duarte. Lembro-me da primeira vez, fui com o Senhor Carlos Pinhão, para um jogo entre Beira-Mar e Sporting. O mestre Pinhão fez a crónica, eu a reportagem e as cabines. Também lá fui com o saudoso amigo Homero Serpa. E com o Cruz dos Santos. Todos figuras gradas do jornalismo. Já como cronista, fui algumas vezes fazer o Beira-Mar, onde sempre encontrava o amigo Nelson Figueiredo, que escrevia sobre natação para A BOLA. Vivia ali perto, aparecia sempre. Era o espírito familiar que existia na chamada bíblia do desporto.
Sabem... O meu último jogo no velhinho Mário Duarte foi a 30 de março de 2002, no Beira-Mar-Farense (2-1). Dei o melhor em campo a Juninho Petrolina. Foi pela Páscoa, no sábado de aleluia, como se deduz do título da crónica do jogo. «Glória, Sousa! Aleluia!», do qual guardei o bilhete emitido para a tribuna de imprensa. Ai que saudades, ai, ai! Para mim, Aveiro e Beira-Mar é… Mário Duarte!
Entretanto, para o Euro-2004, foi construído o Estádio Municipal de Aveiro, na saída da cidade, já longe do centro. Um estádio moderno, cómodo, espaçoso mas… não é a mesma coisa. Tanto mais que o Beira-Mar entrou em crise e quase desapareceu, caindo nas competições distritais.
Nestas recordações, não podemos esquecer que o famoso king Eusébio jogou no Beira-Mar. Foi em 1977, uma curta passagem, quando regressou do Canadá (Toronto Metros). Porque tinha 35 anos, o Benfica rejeitou-o, não o quis de volta. E foi o clube aveirense quem lhe abriu as portas. Alinhou em 12 jogos, como estratega da equipa, no meio-campo. E fez um golo ao Sporting (empate, 1-1). Depois, partiu para Las Vegas (EUA), onde foi representar o Quicksilvers.
Trinta anos depois (2007), outro Bibota de Ouro jogou no Beira-Mar, então treinado por Augusto Inácio — Mário Jardel (já em fase decadente, fez 13 jogos e marcou quatro golos).
O guarda-redes José Pereira (outro magriço do Mundial-66), depois de 15 temporadas no Belenenses, onde se consagrou como o pássaro azul, saiu para terminar a carreira no clube de Mário Duarte. E o meu saudoso amigo José Bastos, guarda-redes do Benfica que venceu a Taça Latina, três campeonatos e cinco Taças de Portugal… também lá foi acabar.
Mas se há nome icónico do Beira-Mar é o de António Sousa. Um símbolo da casa. Ali se evidenciou como jogador, até ser contratado pelo FC Porto, onde conquistou títulos nacionais e internacionais. Regressou a Aveiro para ser um treinador de sucesso: venceu a Taça de Portugal (1999), o maior êxito da história centenária do clube. Curiosamente, foi o filho, Ricardo Sousa, quem marcou o golo da vitória.
São tantos os futebolistas que se notabilizaram no Beira-Mar. Entre outros, recordo o Abdel Ghany (Egito), o Fary (Senegal), os brasileiros Dino furacão, Juninho Petrolina e Cílio Sousa, (grande dedicação ao clube de Mário Duarte pois, mesmo com 44 anos, ainda jogou, para ajudar no ressurgimento do clube… nos distritais). Lembro-me também do Palatsi, do Manuel José, do Redondo, do Dinis (barbudo), do angolano Inguila e do Nelinho, que veio para o Benfica.
E dois rapazes da minha idade que brilharam em Aveiro: o guarda-redes Domingos, camarada da tropa, no RI6 (Senhora da Hora-Porto); e o Fernando Colorado, miúdo da Picheleira, meu colega nas camadas jovens do Sporting. Contou-me que, quando o Beira-Mar jogava no dia de S. Gonçalinho, nunca perdia, recordando o entusiasmo do público, nas bancadas cheias, a puxar pela equipa. Com a malta a bater com as mãos ou os capacetes das motos nas chapas metálicas da publicidade, em redor do campo. Era o fator casa a funcionar. Eu próprio sou testemunha desse ambiente fantástico, e desse barulho ensurdecedor, quando havia um golo ou uma boa jogada. Tudo ali, em cima do relvado, no velhinho Mário Duarte.
Lembro-me de estar na tribuna de imprensa e, durante todo o jogo, ouvir uma tremenda canzoada. O canil municipal era ali ao lado e os cães, de forma exaustiva, nunca paravam de ladrar. Ou seja, tudo a puxar pela equipa.
Ainda há poucos dias recordei aqui a dobradinha da liberdade. Para a deslocação a Aveiro, o Sporting fretou o comboio verde. Foi no dia 21 abril de 1974, quatro dias antes da Revolução dos Cravos. Uma festa pegada, jogadores e adeptos confiantes numa jornada decisiva para a conquista do título 1973/74. No Mário Duarte, empate (1-1), num jogo difícil marcado pelas lesões de Dinis e Baltasar, ambos do Sporting, num choque de cabeças que os levou para o hospital. Baltasar recuperou, Dinis ficou internado, com traumatismo craniano. E já não viajou para a Alemanha, para o célebre jogo com o Magdeburgo.
Quem foi Mário Duarte?
Mário Duarte nasceu em 1869, na Anadia, e faleceu em 1939, em Aveiro. Era um predestinado para a prática desportiva. Foi símbolo do ecletismo porque praticou todo o tipo de modalidades: ciclismo, ténis, remo, tiro, ginástica, natação, esgrima, halterofilismo, luta greco-romana, golfe, futebol e até… tauromaquia. Aliás, Mário Duarte foi considerado, e premiado, como o desportista mais completo de Portugal. Fantástico! Mário Duarte tinha uma ideia muito pura do desporto. Consta que terá proferido uma frase ainda hoje muito indicada: que todos fossem praticantes, para merecerem ser espectadores.
Mário Duarte era avô paterno do poeta/político Manuel Alegre. Foi presidente honorário do Sport Clube Beira-Mar e, nos primórdios, fundador da Federação Portuguesa de Futebol, da Federação Portuguesa de Ciclismo e das Associações de Futebol de Aveiro e de Lisboa. E, já agora, de vários clubes desportivos locais. O mítico estádio, entretanto demolido, foi construído pelo edil Lourenço Peixinho, médico e notável presidente da Câmara Municipal de Aveiro (1918-1942). Contemporâneo e admirador das virtudes de Mário Duarte, razão pela qual atribuiu o seu nome ao estádio da cidade.
Os genes de desportista e empreendedor foram transmitidos ao filho mais velho, também ele Mário Duarte. Também ele atleta e futebolista. Por isso, em 1919, com Artur José Pereira e outros rapazes, foi fundador e o primeiro guarda-redes do Clube de Futebol 'Os Belenenses'. Sendo, portanto, figura mítica do clube de Belém. Foi distinto diplomata português e diz-se que a sua influência é razão pela qual a região de Aveiro é considerada a que tem mais adeptos do Belenenses em Portugal.