Golo dedicado ao «Kampung Portugis»
Bairro português de Malaca mantém tradições ancestrais e uma língua própria em vias de extinção.

OPINIÃO Golo dedicado ao «Kampung Portugis»

OPINIÃO20.06.202413:06

Sem o saber, William Rozario era um de nós; como o são os pescadores do bairro português de Malaca e os Sousa da Índia…

Se marcasse o próximo golo da seleção, haveria de o dedicar à memória de William Rozario, falecido a 20 de agosto de 2010 na cidade de Cochim, sudoeste da Índia. Tinha 87 anos. Alguém que da Lei da Morte se libertou, mas não, como declama Camões no Canto I dos Lusíadas, por «obras valorosas». É que com William Rozario morreu também uma língua: o crioulo indo-português de Cochim, uma mistura de português com o malaila e outras línguas do Cochim antigo. Uma mistura de muitas línguas e culturas. Os últimos anos de vida de William Rozario foram, também, de uma enorme solidão. Após a morte do amigo Paynter, ficou sem ninguém com quem falar o crioulo indo-português de Cochim. Sobram os resquícios depositados no Museu Indo-português, as letras de canções antigas ou a Igreja de São Francisco, que ainda guarda o túmulo vazio de Vasco da Gama, onde foi sepultado antes de ser trasladado para Portugal.

Se eu marcasse o próximo golo da seleção, haveria de o dedicar ao Kampung Portugis, na Malásia, o chamado bairro português onde os pescadores, em maioria, ainda falam o crioulo português de Malaca. Os números são díspares, mas variam entre os cem e os mil. E percebe-se que os crioulos portugueses não se falam apenas em África. Falam-se também em diversos pontos da Ásia: Indonésia, Malásia, Sri Lanka, Índia, Paquistão e Macau. Une-os o português como língua mãe e a ameaça de extinção. Como aconteceu com os de Cochim e Togu (Indonésia).

Em 2006, ao serviço de A BOLA, estive em Macau a fazer a cobertura dos Jogos da Lusofonia. Contactar com a delegação do Sri Lanka e tentar perceber a sensação de pertença que tinha a Portugal foi uma espécie de despertar para uma realidade que me escapava. E a quantidade de Sousas na delegação indiana ajudava a essa consciencialização. Que em muitas comunidades da Ásia existe uma ligação a Portugal que nem sempre é fácil de explicar e que se começou com a chegada dos portugueses no século XVI, estabelecendo parecerias comerciais, trazendo especiarias mais deixando língua e cultura, ganhou vida própria e sobreviveu às presenças posteriores de neerlandeses ou ingleses. Muita gente que não fala português, pouco conhece de Portugal, mas que dança folclore, adota rituais ancestrais e tem de Portugal uma imagem quase etérea de um mundo distante com o qual se identifica sem saber muito bem a razão. À medida que fui ganhando dimensão desta realidade, percebi também as muitas queixas de falta de estratégia de Portugal para manter viva essa ligação que chega a comover.

Se fosse eu a marcar o próximo golo da seleção haveria de festejar com o gesto de um abraço que envolve o Mundo. Mundo onde se celebram os golos de Portugal. Quem tem em Cristiano Ronaldo o maior embaixador do nosso País. Na certeza que a força maior de Portugal é a multiculturalidade. Que vai além da força da própria língua. Basta olhar para a história da própria Seleção a começar pela origem dos jogadores.

Quando digo que sou patriota, há quem olhe de lado na intuição de posições extremistas. Mas eu não tenho culpa que haja quem se queira apoderar da palavra Pátria para lhe conferir definições extremistas, isolacionistas, nalguns casos até racistas. E condeno haver uma espécie de autocensura que brota do abominável politicamente correto e que permite que a extrema direita se apodere da palavra Pátria. Ou se apodere das palavras Deus ou família. Eu não permito.

Eu sou patriota. A minha pátria vai ainda mais além da de Pessoa e extravasa a língua portuguesa. O meu País fala português, crioulo, umbundo, forro, macua, concani ou tetum. Portugal é país europeu mais a sul; o país africano mais a norte; o país asiático mais a oeste e o país americano mais a leste. O meu país tem a força dos que gostam e idealizam Portugal num conceito que supera em muito os limites das suas fronteiras. Porque quando traçamos fronteiras somos, incomensuravelmente, muito mais pequenos.