Esta gente

OPINIÃO29.03.201903:00

EM Portugal, talvez a exibição de Bernardo Silva frente à Sérvia tenha sido, esta semana, a única verdadeira razão para gostarmos de futebol. Não faltaram infelizmente razões para nos lembrarmos do que não gostamos.
É verdade que todos gostamos muito mais do jogo do que daquilo que anda à volta do jogo. Mas todos sabemos que o futebol não é só o jogo. É o jogo e também o que está à volta dele. Para o bem e para o mal.
Às vezes, dá vontade que o futebol fossem só jogadores, treinadores e árbitros - não árbitros como o que esteve no jogo de Portugal com a Sérvia, bem entendido!... -, mas dá vontade que fossem realmente apenas árbitros, jogadores e treinadores. E, de preferência, bons.
Porque são os bons que fazem falta e são os bons que nos fazem gostar de futebol.
Dá vontade, por vezes, que fosse assim. Mas sabemos que não é.
De vez em quando, lá temos de levar num jogo do mais alto nível com um árbitro que faz o que eu (pelo menos que me lembre) nunca tinha visto um árbitro fazer e é incompreensível que faça num jogo com a importância e o impacto que tem um jogo como o Portugal-Sérvia, que era só o confronto do campeão da Europa com uma das boas seleções europeias da atualidade.
Mas além de alguns maus árbitros (e porventura, maus jogadores e maus treinadores) o futebol é também, para o bem e para o mal, um mundo de dirigentes e de empresários, e de bons e maus dirigentes e de bons e maus empresários, mas também de toda uma outra raça mais de gente (boa e má, evidentemente) que vai vivendo no futebol e do futebol porque o futebol movimenta muito dinheiro e muito dinheiro dá muito poder e muito poder precisa de ser alimentado também por gente (mais má do que boa) que fará o trabalho que é preciso fazer para que o futebol possa continuar a gerar e a movimentar muito dinheiro e a dar muito poder aos que já têm o poder de ter poder!
Sempre foi assim.
Algumas das práticas que parecem chocar agora muita gente não são de hoje. São de há muito tempo. As práticas e algumas pessoas são as mesmas, os tempos é que são diferentes.  

ALGUÉM pode ficar admirado por ter visto - quem quis, evidentemente, ver - o triste espetáculo dado esta semana por um senhor que se diz fazer parte do futebol e que no futebol deixará apenas muito mais a má fama e o proveito próprio do que qualquer mísero contributo positivo?!
Ninguém se iluda: o que se viu esta semana é apenas um filme antigo com nova tecnologia.
Esta gente (má) é igual a tanta gente que sempre andou no futebol e a viver do futebol e a fazer mal ao futebol porque julga que o futebol, como fonte de dinheiro e de poder, se alimenta do sombrio, da influência e da agressão.  
A diferença é que hoje há telemóveis e redes sociais e muitos canais de televisão e muitos comentadores e quase tudo transformado em lamentáveis tribunais populares, e tudo se sabe, e tudo se julga saber, e tudo se grava e tudo se filma e se mostra, e com a maior das facilidades se acusa, e se manipula e se evangeliza.
Também é verdade que muito se vê hoje e se descobre, e tudo é, por isso, muito mais difícil de esconder e de apagar e de fazer sem deixar rasto.
E isso é bom. Porque saber mais é na verdade ter mais liberdade. E é poder vigiar. E escrutinar.  E regular. E julgar. E punir.
Esse é o lado bom.
O lado mau é o da impunidade. Quando se percebe que o poder também quer fazer lei. E ditar a regra. E quando muitos julgam que podem fazer o que querem e bem lhes apetece.
Não podem fazer quanto mais julgar que podem.

UM cavalheiro que agride outro e o ameaça e insulta e faz trinta por uma linha e grava tudo num telemóvel e o mostra a toda a gente, e depois faz, em direto, na TV acusações tão graves como a que este cavalheiro fez tem, no mínimo, de ser confrontado pelas autoridades policiais.
Porque isto não é uma república das bananas embora, às vezes, pareça que é, e sobretudo às vezes parece que é quando se fala de um certo meio de gente que gravita no futebol mas não só no futebol e se alimenta de práticas absolutamente condenáveis que sabemos serem, afinal de contas, muito transversais a uma sociedade que em muitos aspetos não aprendeu ainda a viver em Liberdade e Democracia e tende a violar todas as mais elementares regras sociais em nome da ganância do dinheiro e do poder que o dinheiro dá, e o futebol, para o bem e para o mal, é hoje das atividades que mais dinheiro gera e movimenta e mais dinheiro dá também a ganhar (e nem sempre com a melhor das transparências) a gente disposta a fazer, por vezes, o trabalho mais sujo para alimentar o poder dos que têm mais poder.

GENTE esta que gravita hoje no futebol como gravitava há 30 ou 40 anos quando o futebol começou, então, a ganhar verdadeiro poder e a dar poder, e a gerar e a movimentar mais e mais dinheiro e cada vez mais poder, e, pior do que isso, aquele poder que parece sempre não querer saber da lei nem das regras.
Há 30 anos, à volta do futebol, também se agredia e insultava. E também se ameaçava. Só não se filmava com o telemóvel. Cometia-se o crime mas não se falava dele na televisão.
Noutros tempos, era-se Papa quase sem risco. Usava-se e abusava-se do poder e também se mandava bater e insultar e ameaçar e se usavam as cunhas e os compadrios e fazia-se tráfico de influências sem qualquer castigo.
O futebol fazia a sua própria lei. E assim se habituou ao longo dos anos.
Era o tempo em que imperava a  lei do mais forte, do mais hábil, do mais poderoso, do que tem mais influência, mais peso social e mais dinheiro. E que, também por isso, mais vencia.
 O que lamentavelmente sucedeu esta semana entre cavalheiros que ninguém consegue perceber muito bem porque raio ainda estão no mundo do futebol, e o triste exemplo que o País - porque é sempre o País, e o futebol do País, que dá a cara - exibiu ao mundo do futebol, talvez devesse servir para tentarmos todos acabar de vez com esta maquiavélica cultura do tão vulgar e abominável chico espertismo que tanto mina o tão bom que o futebol tem.
Veremos, também, o que farão as autoridades desportivas.

TEM a Justiça, em resumo, a palavra. A Justiça desportiva e a Justiça cível e criminal. Têm, aliás, a última palavra. A mais importante das palavras. Porque merecemos todos saber a verdade sobre tudo, seja o que for, mais tragédia ou mais comédia, casos de emails ou e-toupeiras, cashballs ou apitos mais ou menos dourados, Football Leaks ou outras coisas que tais.
Doa a quem doer e custe o que custar.
Sem hipocrisia e sem falsa moral.
 E enquanto esperamos e desesperamos que a Justiça faça, como lhe compete e acreditamos, o seu trabalho - quão pouco nos resta se não confiarmos nisso?!... - talvez valesse, por outro lado, a pena, com toda a franqueza, refletirmos todos sobre a mensagem tão atual deixada pela inigualável Sophia de Mello Breyner no  poema Esta gente.

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo