Elogio ao futebol e mãos na área
Se o que aconteceu no Ajax-Feyenoord tivesse sido por cá seria o fim do mundo
1. Li uma publicação do meu amigo Tiago Madureira, até há pouco tempo Diretor Executivo da Liga Portugal, que entre outras considerações dizia o seguinte: «Sempre me incomodou o negativismo permanente que colocamos em todas as discussões sobre o nosso futebol. Mais ainda o desdém e as lições de moralidade barata sobre o tal circo que é o futebol português.» A reflexão surgiu a propósito da interrupção definitiva do Ajax-Feyenoord, a enésima naquelas bandas devido a mau comportamento de adeptos nas bancadas. Tem toda a razão.
Tentem imaginar o que se estaria a dizer por cá se um jogo da liga portuguesa tivesse terminado mais cedo devido a tumultos daquela natureza. Seria o fim do mundo, logo aproveitado pelos demogogos para o bota-abaixo do costume: «Somos a chacota da Europa.. aqui é pior do que em alguns países de terceiro mundo... isto só lá vai com uma limpeza geral», etc e tal. Na verdade, não somos assim tão maus. É importante que reconheçamos, com sentido crítico, que temos muito a melhorar. É verdade que nesse universo poderoso há pessoas, situações e cinzentismos incompatíveis com o que se espera numa indústria desta dimensão e notoriedade. Sobre esses, sobre isso, devemos manter voz ativa e monitorização apertada. Sem medos, com independência e coragem. A direito.
Mas no essencial estou com o Tiago. É também justo reconhecermos que, face às nossas caraterísticas e limitações (a vários níveis), temos conseguido mais do que muitas outras ligas com mais e maior capacidade: continuamos a produzir talento com facilidade incrível, temos jogadores de nível mundial, treinadores de topo espalhados pelo globo, seleções competitivas, estádios com qualidade e até empresários de quilate universal. Diria até que temos mais galáticos per capita do que muitos campeonatos mais apessoados do que o nosso.
Como já terão percebido, sou e serei sempre crítico acérrimo de tudo o que são comportamentos desviantes e malabarismos reprováveis. Estou à vontade para o fazer porque não tenho telhados de vidro e, acima de tudo, porque falo com relativo conhecimento de causa. Vivi e senti esta realidade, anos a fio. Calcei e descalcei botas milhares de vezes, suei camisolas, passei por tudo o que era balneário e conheço o suficiente as pessoas, o negócio e o respetivo modus operandi. E é precisamente essa experiência que me permite fazer também o exato oposto: reconhecer quando as coisas são bem feitas, quando há momentos que exigem aplauso e pessoas que merecem elogios. Não custa nada e sabe até muito, muito bem.
Tenhamos todos a capacidade, humildade e acima de tudo a justiça de dar mérito a quem o tem. A maledicência não é boa para a saúde de ninguém.
2. No Benfica-Salzburgo da passada 4.ª-feira, João Mário rematou bola na queima que bateu no braço direito de um adversário, que estava dobrado, encostado ao peito, encolhido, em movimento de proteção para o impacto e com o defesa a olhar na direção oposta. O árbitro não assinalou pontapé de penálti, e muito bem. Uns dias depois, no Algarve, Morato colocou o braço direito fora da zona natural do seu corpo, ocupando espaço por onde a bola passaria se não fosse desviada e tirando benefício direto desse contacto (o remate que ia para a baliza foi para canto). O árbitro assinalou pontapé de penálti, e muito bem. O que foi tecnicamente óbvio para os árbitros e videoárbitros e para todos (todos!), os comentadores de arbitragem que os analisaram a posteriori foi uma incoerência premeditada aos olhos de alguns adeptos mais apaixonados. Não há razão visível e óbvia que prevaleça quando a emoção só permite ver o que o coração deixa.