Do odor a sangue...
O espírito da metáfora dos «golpeadores de rua» do Bielsa é coisa que não falta a Sérgio Conceição e ao FC Porto
J Á depois de ter ganho tudo o que havia para ganhar no Barcelona (e quase tudo no Bayern) e andando a apanhar mais eternidade por Manchester, Pep Guardiola afirmou que sendo Johan Cruyff a figura que mais o influenciou no futebol - a personagem que mais admirava era, contudo, Marcelo Bielsa:
— É único, ninguém pode imitá-lo e, como treinador, sinto que estou sempre muito longe do conhecimento que ele tem…
Muito longe, sobretudo, do conhecimento que Bielsa tem do futebol para além do bola - filosófico e idealista, genial e desconcertante. Talvez por isso (mas não só) há quem lhe chame (ao Bielsa) El Loco - sem que tal o importune, bem pelo contrário:
— Quando, após o fiasco no Mundial de 2002, abandonei a seleção da Argentina, enclausurei-me num convento. Três meses lá vivi apenas com os livros que levei, sem telemóvel, sem televisão. Ao sair já começava a falar sozinho, a ficar, aí sim, louco de verdade. Mas foi assim que percebi e descobri que o êxito é uma exceção e que se me pedirem para analisar um treinador, eu prescindo dos resultados, examino-lhe os métodos…
É, é o que eu faço (aprendendo como ele). E, assim, sempre que independentemente dos resultados, analiso os métodos de Sérgio Conceição, vejo-o melhor treinador de dia para dia - para sorte do FC Porto. Não fora os seus métodos e os seus resultados não seriam o que são (e têm sido) - com aquilo que lhe dão (e lhe têm dado) para trabalhar, em termos de talento e categoria (e não é comparável com o que Rui Costa já deu e ameaça continuar a dar a Roger Schmidt).
Sim: os seus métodos são bem melhores que os seus resultados (que são muito melhores do que se imaginaria que pudessem ser...) - e eu não tenho fímbria de dúvida: sem os métodos (e os resultados) de Sérgio Conceição, Fernando Cerqueira não teria, ainda agora, lançado (uma vez mais) lista da Comissão de Recandidatura de Jorge Nuno Pinto da Costa à presidência do FC Porto para 2024-2028 - pondo Manuel Pizarro, seu primeiro subscritor, a afiançá-lo:
— Não vejo ninguém à altura dele!
Igualmente filosófica (mas menos idealista), igualmente genial (mas menos desconcertante) é outra ideia de Bielsa (à Bielsa):
— Morro após cada derrota no sentido em que a semana seguinte é um inferno. Como se deixasse de merecer simples alegrias quotidianas, inabilitado para a derrota. Mas certo de que acabo sempre a crescer nos momentos de fracasso e a piorar nos períodos de êxito - porque o sucesso é deformante, relaxa, engana, torna-nos piores, faz com que nos enamoremos de nós mesmos…
Nisso Sérgio Conceição é assim e também não é assim (tal como na questão dos resultados e dos métodos). Não é assim porque, no seu espírito, morrendo a cada derrota ressuscita no instante seguinte - crescendo no fracasso (isso sem dúvida) sem que o sucesso o deforme, o relaxe, o engane - e, acima de tudo, o deixe enamorado dele mesmo. (Sendo diferentes, nesses últimos pontos, Roger Schmidt e Rúben Amorim também são assim…)
Porém é numa outra ideia de Bielsa (filosófica e não idealista) que eu vejo perfeito o Sérgio Conceição (sem que Roger Schmidt ou Rúben Amorim sejam assim no espírito mais empolgado da metáfora - assim, no espírito mais empolgado da metáfora, o FC Porto só teve José Maria Pedroto…):
— Nas lutas de rua há dois tipos de golpeadores: o que ataca, vê sangue, assusta-se e recua; e o que ataca, vê sangue e vai com tudo, até matar. Por isso é que é preciso repetir todos os dias o que eu disse, certa vez, ao chegar a um balneário: venho de fora e juro-vos que já sinto aqui o odor a sangue…
É, é mesmo assim Sérgio Conceição - e é mais e melhor no jeito que tem para pôr os jogadores a ver sangue e a ir com tudo até matar. Ou para controlar-lhes a autoestima que os conduza à vaidade e a vaidade que os faça egoístas - de modo a que a equipa seja mais importante que o indivíduo (e a lassidão o seu pecado). E porque também é mesmo assim o futebol: mais importante do que explanar-se uma boa ideia de jogo (que é o que Sérgio Conceição tem) é não se transmitir ao jogo da ideia uma má emoção. Foi o que continuei a ver no FC Porto dos últimos dias (mesmo sem resultados brilhantes e as exibições ainda menos). E, por isso é que acho que, contra equipa assim, contra treinador assim - a preocupação maior do Benfica (que, do ponto de vista da qualidade do plantel e das suas soluções, me parece melhor...) não deve estar nos pés dos seus jogadores. Deve estar em saber se Roger Schmidt conseguirá meter o Bielsa na cabeça e no coração dos seus jogadores, não apenas na metáfora dos «golpeadores de rua» ou do «odor a sangue»…