De Paulo Anes a Guerra Junqueiro
Não resisto à partilha em jeito de homenagem à inteligência de ambos
MUITOS dos meus amigos não terão (ainda) ouvido falar de Paulo Anes, um génio sem igual, com todos os tiques de genialidade que os grandes génios têm: frontalidade avassaladora, pensamento fora da caixa, posições distintas, feitio atípico e caráter inquebrável. É diferente, é raro e por isso, é valioso. Valioso como pessoa (bondosa), como homem (de bem) e como ser humano (de exceção).
Tenho o prazer de o ter como amigo há uns anos valentes. Tenho aliás pena de não o ter conhecido mais cedo, quando a impulsividade ainda tomava decisões tontas em nome daquela que achava ser a razão de então. Dores de crescimento. Quem nunca?
O Paulo é um pouco de tudo o que é diferente, mas em bom: é escritor, poeta, pensador e estudioso. Estuda, lê e devora tudo e mais alguma coisa. Sabe um pouco de tudo. É um homem à antiga que pensa de forma moderna. Chega a ser irritante tanta elasticidade intelectual. É um daqueles casos especiais, que publica uma série de livros, escreve poemas espantosos e faz quase tudo o que a criatividade e inteligência permitem que um sapiens distinto faça. Provavelmente só será reconhecido com justiça daqui a umas décadas, quando alguém se lembrar da sabedoria das suas palavras e da inteligência mordaz das suas tiradas.
Ontem lembrou-se de partilhar nas suas redes sociais (seguidas apenas por quem ele quer, obviamente) um excerto de Pátria, do inimitável Guerra Junqueiro. A obra, datada de 1896, é ainda hoje reconhecida como a mais marcante que o político, deputado, jornalista, escritor e poeta redigiu, sendo particularmente elogiada pelos críticos a forma como se mantém tão atual, ainda que passados 125 anos.
Não resisto à partilha em jeito de homenagem à inteligência de ambos:
«Um Povo Resignado e Dois Partidos sem Ideias
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta. [.]
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo cético e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos atos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.»