«Quero ser treinador de futebol», disse-me José Mourinho
Professor universitário jubilado e filósofo, Manuel Sérgio escreve na Tribuna Livre, um espaço de opinião de A BOLA aberto ao exterior
No ano letivo de 1982/1983 e no ISEF/UTL (Instituto Superior de Educação Física da Universidade Técnica de Lisboa) lecionava eu a disciplina de Filosofia das Atividades Corporais, no primeiro ano da licenciatura. E começava por salientar a figura tutelar e veneranda de Sócrates (viveu em Atenas, no século V a.C.) que foi condenado à morte, acusado de corromper a mocidade e ser ímpio em relação aos deuses da cidade.
Sobre a vida de Sócrates fazia então algumas observações: Sócrates não era um teórico, fechado no seu gabinete, ufano do seu muito saber intelectual e distante de qualquer conhecimento prático. Bem pelo contrário: andava pelas ruas, interrogando as pessoas e alegando que o fazia porque nada sabia. Enfim, ele era subversivo, porque desnorteava a mocidade e perturbava a ordem do conhecer e do fazer instituídos. Deveria ser portanto condenado à morte.
Procurava, depois, traçar um paralelo entre a vida de Sócrates e a Filosofia das Atividades Corporais: o lugar da Filosofia é na praça pública e portanto em (digamos em linguagem atual) permanente interdisciplinaridade com a prática. E, porque na praça pública — também (assim o continuo a pensar) a sua vocação política. Mas o meu apelo insistente à prática, como conditio sine qua non de conhecimento, permitiu, um dia, ao Rui Vitória (um treinador de alta estirpe, tenho a certeza) dizer-me: «O professor até parece que praticou desporto.» Relembro, neste passo, o Rui Vitória, um gentleman… com todas as letras!...
Mas tive, nesse ano letivo já distante de 1982/1983, um aluno (como retratá-lo?), um tipo de rapaz, mais alto do que baixo, magro, elegante e arguto, sagaz, desassombrado, que nunca escondeu uma simpatia muito especial pelo «Professor Manuel Sérgio»: o José Mário dos Santos Mourinho Félix — hoje, o Doutor José Mourinho, licenciado e doutor honoris causa pela Universidade Técnica de Lisboa e, como profissão, treinador de futebol. Mas qual a razão da sua generosa simpatia? A razão primeira parece ser esta: finda uma das nossas aulas do primeiro ano do curso (há 42 anos, portanto) perguntei-lhe o que ele pretendia ser, concluída a licenciatura. Respondeu-me, com toda a simplicidade, sem artifício nem cálculo: «Quero ser treinador de futebol.»
Ouvi-o surpreendido, confesso. Naqueles anos, já distantes, o licenciado em Educação Física e Desporto, ou optava pelo magistério, na Escola, ou treinava uma das modalidades amadoras ou no futebol altamente competitivo não passava de preparador físico. Muito poucas eram as exceções a esta regra: o lugar de treinador era pertença exclusiva do antigo jogador profissional de futebol. Estou a ouvir o Acácio Rosa, sentado na sua cadeira, na Sala da Direção do Belenenses, sempre de raciocínios retilíneos, sem desvios nem diversões: «Para saber de bola, é preciso ter suado a camisola.» E olhava para mim a sorrir, empurrando-me, sem aduzir quaisquer argumentos, para o grupo barulhento dos teóricos : «Só conversa não é futebol, é parlatório.»
Uma evidente vocação
Filho de um jogador internacional de futebol, o José Mourinho, antigo guarda-redes do Vitória de Setúbal e do Belenenses (no Belenenses, ainda chegou a treinador da equipa principal); e, sobre o mais, filho de família de exemplar conduta moral (ocorre-me o Sr. Pedroto, referindo-se ao José Mourinho (pai): «Esse rapaz é um santo») — o José Mário dos Santos Mourinho Félix, que hoje o mundo todo conhece por José Mourinho tão-só, teve no seu pai o primeiro grande estímulo a que não abandonasse o futebol e que pudesse concretizar, um dia, o sonho que, jovem ainda, já lhe norteava a existência: ser treinador de futebol.
Não vou discutir, aqui, se a palavra vocação tem, ou não tem, valor científico. Mas quando vi o José Mourinho afirmar, com tamanha sinceridade e convicção, com apenas 19 anos de idade, «quero ser treinador de futebol» —arreigou-se em mim a crença de que aquele meu aluno (não de futebol — nunca ensinei futebol a ninguém) estava vocacionado, se tivesse o apoio necessário, a um futuro, como líder de uma equipa de futebol, a que poderia caber o designativo de, pelo menos, modelar.
Mais tarde, quando o vi adjunto do Manuel Fernandes e do Bobby Robson e do Louis van Gaal e, tendo em conta a sua argúcia (que não é vulgar, podem crer) e o seu manifesto espírito de bem servir, perdi as dúvidas, esqueci-me até da dúvida metódica e, com palavras efusivas, cheguei a dizer e a escrever que «vai nascer, mais tarde ou mais cedo, um grande treinador de futebol». E adiantava, com fervente entusiasmo: «O José Mourinho, adjunto do Bobby Robson e do Van Gaal?... Vai ser grande, grande como os maiores.»
Mas, como íamos dizendo, diante de um rapaz, de múltiplos talentos e com uma vontade imparável de, no futuro, assumir funções de treinador de futebol, exprimi-lhe assim um conselho amigo: «E nunca se esqueça que, para ser um bom treinador de futebol, não chega saber muito de futebol.» Aqui, o Mourinho atalhou: «Porquê, professor?». Eu continuei: “Porque no futebol, nomeadamente no de alta competição, há tudo o que é humano, o mau e o bom.» E, afetuosamente, terminei: «Como vê, não basta saber só de futebol.» Nasceu assim uma amizade que o tempo não apaga e que não deixa de penhorar-me pelo cunho de sinceridade que o José Mourinho lhe imprime.
Um excecional treinador
Em 1982, quando este encontro com o José Mourinho aconteceu, eu lia um autor, fundamental ao estudo da epistemologia: Gaston Bachelard. A epistemologia (e repito a definição de um douto epistemólogo, o brasileiro Hilton Japiassu) «é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências». Procurava então apresentar aos meus alunos esta ideia: a vossa futura profissão tem fundamentação científica autónoma. É uma ciência hermenêutico-humana (ou social e humana) com a dignidade e a seriedade de qualquer outra ciência. Mas uma ciência nasce sempre de um «corte epistemológico», em relação ao senso comum, à tradição, à inércia, à ordem-desordem de todas as ditaduras, incluindo aqui as ditaduras religiosas.
No entanto, um corte epistemológico não é fácil assumir: toda a sorte de invejosos, de ressentidos, de oportunistas de videirinhos, de subservientes criam, imediatamente, um ambiente de reserva, ou mesmo hostilidade, aos que começam a surgir com a justa auréola de inovadores, ou seja, com a capacidade de emitir luz própria. José Mourinho, campeão nacional em Portugal, em Inglaterra, em Itália, vencedor da Taça UEFA, da Liga dos Campeões e da Liga Conferência, o melhor treinador do mundo (IFFHS — 2005) e que foi um precursor já sabe até onde chega o ressentimento e a inveja. Já sabe até onde podem chegar os que preferem a verdade dos princípios o oportunismo das glórias fáceis.
Aludindo à justiça do que venho escrevendo neste artigo, oiço a interrogação de alguns leitores: «Mas o Mourinho foi mesmo um precursor?» O Prof. Luís Lourenço, o mais fiável de todos os inúmeros biógrafos de Mourinho, com uma tese de doutoramento (de que fui o feliz orientador) sobre a liderança de José Mourinho, que é um modelo de saber e sabedoria, escreve a propósito: «De facto, Mourinho é diferente. No seu trabalho, nada está separado, descontextualizado ou isolado. Tudo tem a ver com tudo (…). Um exemplo? Um jogador de uma equipa sua não deixa de o ser só porque não está a treinar ou a jogar. Quando está no período de descanso, ou dia de folga, em casa, ou em qualquer evento social, ele continua a ser jogador da equipa, representando, de alguma forma, o resto do grupo e até a organização a que pertence.»
E, páginas adiante: «Para Mourinho, na sua relação com os atletas, não interessa o atleta físico, cartesiano, mas sim o atleta homem.» (Luís Lourenço, Mourinho — a descoberta guiada, Prime Books, 2010, p. 47). Por isso, o treinador não deve só saber treinar o jogador de futebol, deve também saber educar o homem que é jogador de futebol. É que não há jogos — há pessoas que jogam. Porque norteou o seu trabalho à luz do paradigma da complexidade e publicamente o disse (cfr. op. cit. pp. 31 ss.), porque dialoga com os jogadores antes de decidir (op. cit. p. 109), porque os respeita e se respeita — José Mourinho foi, sem quaisquer dúvidas, um percursor, um anunciador de um futebol novo.
Mas poderão objetar-me: e a técnica e a tática e a preparação física?... Trata-se de matéria que qualquer treinador domina. De difícil resolução são os problemas humanos. Os dos outros e… os próprios!