Da parte para o todo
Não é expectável que um ex-árbitro que tem artigo de opinião neste diário desportivo não se refira hoje àquele que tem sido o assunto dos últimos dias: o lance do segundo golo do Benfica frente ao Rio Ave.
As opiniões não foram consensuais, o que no caso até se percebe: há quem defenda que a primeira ação (Florentino com Gabrielzinho) foi/não foi ilegal, como há quem entenda que a segunda (posição de João Félix) devia/não devia ter sido punida.
Como referi antes, a minha opinião técnica do lance é clara: Florentino empurrou Gabrielzinho de forma continuada, até à sua queda na área encarnada. Serão poucas as pessoas que não encontrarão intensidade em ação tão prolongada. De acordo com as regras, estas faltas devem ser punidas onde começam, no caso, com pontapé livre direto. O contacto do médio (braço esquerdo) nas costas do vila-condense foi sempre o mesmo mas começou fora. A única exceção prevista na lei são os agarrões dos defesas, em lances que comecem fora e terminem dentro: a indicação aí é para punir onde terminam, ou seja, com pontapé de penálti. Esta infração, em si, justificava a anulação do golo. O empurrão devia ter sido revisto pelo VAR, porque determinou o momento em que os encarnados ganharam a posse de bola que conduziu ao golo.
Quanto à posição de Félix, a letra da lei pode permitir outras leituras, mas esta foi a minha: no momento do passe de Seferovic, o jovem avançado estava adiantado mas sem interferir com o jogo/adversário. Ao ver a bola dirigir-se para a frente e na direção da sua baliza (para onde também correu Pizzi), Léo Jardim fez o que todos os guarda-redes fazem em cenário de perigo: saiu para fazer a mancha, para defender a bola, para agarrá-la com as mãos. Foi por isso que se mandou ao solo e tocou-a com as mãos, sendo infeliz na abordagem e deixando que ela fugisse para Félix. Para mim, essa ação foi uma tentativa de defesa deliberada. E a Lei 11 refere que as «defesas deliberadas» dos GR não anulam a posição irregular anterior.
Percebo quem se socorre da letra da lei para argumentar que o que Léo Jardim fez não foi defender a bola, mas se conseguirmos perceber bem a intenção daquele movimento, estaremos quase todos de acordo: o GR atirou-se aos pés de Pizzi, projetando-se no solo e fazendo pleno uso da prerrogativa especial que dispõe (usar as mãos), porque quis fazer uma defesa. Não houve alívio defeituoso com o pé ou uma bola acidentalmente colocada nos pés do adversário.
Sem prejuízo desse lance e centrando a discussão em patamar mais distante, parece-me redutor que se atribua todo este peso a uma só jogada, como se ela fosse determinante nas contas finais de um campeonato em que cada uma das 18 equipas jogou 34 vezes.
Esta época os árbitros erraram muito. Erraram mais do que se desejava, tendo em conta o apoio adicional que a FPF lhes ofereceu. Mas, a meu ver, fizeram-no de forma transversal. Fizeram-no em vários jogos, de várias equipas. Fizeram-no em vários momentos e em várias jogadas. A contabilização dos erros de arbitragem como fator determinante na verdade de uma prova só é honesta se contabilizada no seu todo. Da primeira à última jornada, em cada um dos seus encontros. Os benefícios não podem ser omitidos perante a evidência de prejuízos. Esta máxima devia aplicar-se a todas as equipas, em todos os momentos da competição.
Não esqueçamos também que a verdade desportiva depende de muitos outros fatores (do jogo e extra-jogo). Muitos mesmo. A discussão séria fará sentido sim, mas apenas quando essa contagem estender-se também aí. Sem receios nem tabus. Até lá, continuamos a falar da parte que interessa e não do todo que realmente afeta o processo. Como ex-árbitro, lamento. Fica sempre a sensação que os homens do apito são o pior que o futebol tem, quando garantidamente... não são.