Nesta imagem de 2013 na Faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa, Jorge Jesus, treinador do Al Hilal, surge acompanhado por Manuel Sérgio, filósofo, professor, escritor e antigo político português
Jorge Jesus e Manuel Sérgio são amigos de longa data (Foto: MIGUEL NUNES)

TRIBUNA LIVRE DE MANUEL SÉRGIO Carta aberta ao Jorge Jesus

OPINIÃO03.01.202511:00

Tribuna Livre é um espaço de opinião de A BOLA, esta da autoria de Manuel Sérgio, filósofo, professor, escritor e político português

Querido Amigo: o Jorge Jesus é, para mim, uma trindade: o homem bom; o trabalhador incansável, porque nunca repousa, num trabalho de transcendência (não lhe basta o que faz, quer sempre fazer melhor); e o excecional treinador de futebol. De facto, é mais conhecido como treinador de futebol de muitos méritos. A quem intente depreciar o mister Jorge Jesus que leia o seu currículo desportivo (agora enriquecido com o título de melhor treinador do Médio Oriente) e a resposta será concludente: um (repito-me) excecional treinador de futebol.

Não sabe Jorge Jesus fundir, sintetizar, concentrar numa obra de pensamento sistematizado e depurado a teoria da sua prática? Será trabalho para uma futura (ou nascitura?) tese de doutoramento de um jovem, tenha a idade que tiver. Fui adjunto de Jorge Jesus, no Benfica. Pude sentir como, a treinar, a sua eloquência se expande sem disciplina crítica, num livre jogo de intuições, observações, reminiscências, mas que os jogadores entendem e fazem suas. Jorge Jesus, nas suas palestras aos seus jogadores, tem a mesma espontaneidade, a mesma incerteza, a mesma emoção que ressalta de um jogo de futebol.

Mas o futebol não é mais do que futebol? Sem dúvida! Por isso, nenhum treinador é perfeito. Acontece com os grandes treinadores (e com os grandes homens, afinal) o que acontece com os quadros dos grandes pintores: tiram o seu relevo e a sua beleza do mesmo contraste de luz e sombra. E só à distância nos dão a ilusão de perfeitos.

À distância, quando os historiadores se deitarem ao estudo do currículo desportivo de Jorge Jesus concluem, por certo, que ele foi bem mais do que o melhor treinador do Médio Oriente. E o que nele há de mais saudavelmente espontâneo, até distante da tarefa reflexiva e elaboradora, é espontâneo, porque Jorge Jesus é sinónimo de futebol!

Na gala dos Globe Soccer Awards, que se realizou, no Dubai, a 27 de dezembro, subiram ao palco, para receberem os respetivos troféus, Jorge Jesus e Cristiano Ronaldo, dois portugueses: este, aos 39 anos ainda consegue ser o melhor jogador do Médio Oriente (acabo de aludir ao melhor jogador de futebol de todos os tempos, segundo muitos dos entendidos); aquele, porque ganhou, invicto, o campeonato saudita, como treinador do Al Hilal.

Quando comecei a trabalhar, com o meu Amigo, no Benfica, surpreendia-me a sua rápida e certeira leitura do jogo. Só mais tarde percebi que o Jorge Jesus vê o futebol com inocência e, portanto, o vê na origem. Entre Educação e Conhecimento a relação parece estreita, direi mesmo: íntima. E a educação, tendo a aula como referência central, parece ser o radical fundante do conhecimento. Na Sociedade do Conhecimento, o excluído é o que se encontra excluído do conhecimento e portanto da escola. E o meu Amigo? Praticamente sem escola, sabe mais de futebol do que muitos (quase todos?) os licenciados, os doutorados, em educação física e desporto, ou em motricidade humana.

Na Sociedade do Conhecimento (se bem penso) é preciso passar de uma educação que reduz o aluno a comandado, cujo horizonte de vida não pode ultrapassar o do professor, para uma educação permanente que só a vida pode proporcionar. Sem dispensar a escola, evidentemente. «Questionar não é só desconstruir; é também relativizar, olhar de outro ângulo, de outro contexto» (Pedro Demo, Educação e Conhecimento, Editora Vozes, Petrópolis, 2000, p. 132). E portanto relativizando a escola, deixando entrar nela, em verdadeiro processo dialético, a teoria e a prática de profissionais, como Jorge Jesus que, sem escola, também nos podem ensinar futebol — como o seu currículo desportivo o atesta.

Fui adjunto de Jorge Jesus, no Benfica. E, sendo embora licenciado e doutorado e professor agregado, aqui digo, publicamente, que muito aprendi da sua lucidíssima inteligência. Sim, por vezes, ele é um orador que parece narcisar-se com a sua linguagem. E porquê?

Sobre o mais, porque os seus habituais ouvintes, os seus jogadores, findas as palestras do seu treinador, e tendo mesmo em conta o espírito de rebeldia que anima os mais jovens, não escondem a sua admiração: «Este homem diz-nos de futebol o que ninguém nos disse.» E alguns chegaram a confidenciar-me (não minto): «Melhor treinador do que este? Não conheci, nem conheço.»

O sr. José Maria Pedroto que, com o apoio fraterno de Jorge Nuno Pinto da Costa, transformou radicalmente o futebol do FC Porto, era da opinião que o melhor treinador de futebol era sempre o ex-jogador da linha média. E acrescentava: «Vê o Manuel José e o João Alves? Sabem pensar o futebol. Não tenho receio em vaticinar: 'Serão, no futuro, grandes treinadores'.»

E foram. E ainda professava à minha ignorância futebolística: «O jogador da linha média precisa de ter, em todos os momentos do jogo, uma visão global desse mesmo jogo, para saber servir os seus companheiros.»

De José Maria Pedroto até hoje, o futebol evoluiu. Não só no treino, mas também taticamente. Hoje, deverão ter uma visão global do jogo todos os jogadores de um desporto coletivo. Mas será de salientar como o sr. Pedroto, há mais de 50 anos, já desejava, para a sua equipa, verdadeiros (e sirvo-me de uma expressão muito atual) «trabalhadores do conhecimento».

Evoco sempre com enternecimento o nome de Pedroto. Era um profissional de futebol com um saber disponível para a eternidade Ora, o meu Amigo sempre jogou na linha média. Se vivo fosse, o sr. Pedroto apresentá-lo-ia como exemplo da sua tese. Mas eu só queria dizer-lhe, uma vez mais, que o direito à vida se confunde, hoje, com o direito de aprender e que o meu Amigo é um dos meus Mestres.

Seu

Manuel Sérgio