As lições de Sven
Sven-Goran Eriksson foi um exemplo em diversos sentidos (Foto Miguel Nunes)

As lições de Sven

OPINIÃO31.08.202412:30

'Livre e direto' é um espaço de opinião semanal do jornalista Rui Almeida

O futebol é um jogo. Não podemos pensar que jogamos contra alguém, se antes não tivermos plena consciência de que é necessário jogar com alguém.

O rival é isso mesmo: um oponente, um adversário durante o tempo de jogo, mas um aliado na promoção do espetáculo, da indústria, dos empregos, dos ideais, do jogo no que de mais genuíno tem.

Talvez esta pareça, à partida, uma ideia romântica, mas logo o deixará de ser para assumir uma perspetiva de total realismo, se tivermos em consideração a dimensão verdadeiramente global da modalidade mais marcante para o planeta.

Esta ideia de jogo, de partilha de conhecimento, de inovação técnica e de gestão, de comunicação circular, de comunhão de objetivos muito para além de noventa minutos, foi, desde o início da sua carreira, a ideia de Sven. E, na realidade, a sua primeira grande lição.

Lembro o espanto do mundo do futebol quando o IFK Gotemburgo venceu, com estrondo, a Taça UEFA. Depois de 1-0, na Suécia, frente ao Hamburgo, a equipa escandinava bateu os alemães, no segundo jogo, por 3-0. Futebol prático, alegre, total, móvel, olhando a equipa como um todo e o todo como a soma da qualidade individual de cada um. 

Sven ganhava assim a confiança pela competência, que redundava em resultados inimagináveis, ainda que a equipa de Gotemburgo fosse, à altura, um dos principais emblemas do seu país, porém longe de assumir protagonismo no cotejo continental europeu. Era a sua segunda imensa lição, feita do mérito que as conquistas levitimam, mas que os processos provocam e constroem.

A carreira do predestinado de Torsby, para lá de ascensional, quase meteórica na sua evolução, trouxe a Portugal uma perspetiva única de ver e pensar o jogo. A sua contratação pelo Benfica representou uma lança extraordinária do clube português, mas projetou, sobretudo, uma nova forma de ver e transmitir a simplicidade e a dignidade das funções que desempenhava.

Sven passou por Portugal (e pelos encarnados), por duas vezes, totalizando 222 jogos, ao longo de cinco anos, à frente da equipa da Luz. A sua influência foi muito superior a todos esses encontros, estendendo-se ao modo como organizou departamentos e respeitou as suas hierararquias, como trabalhou com planeamento e definição de objetivos de médio e longo prazo, como soube gerir os recursos humanos como poucos, alicerçando o seu consulado em equipas muito coesas, nas quais sempre pontificou Toni, que Sven soube aproveitar e respeitar no universo benfiquista e como representante da história do clube.

Será muito difícil em Portugal, e na história dos campeonatos lusos, encontrar alguém com a classe e o savoir faire deste homem. Terminando a carreira há apenas cinco anos, como selecionador das Filipinas (ele que também orientou os combinados nacionais do México, da Costa do Marfim e de Inglaterra), Sven deixou um rasto de competência que nunca necessitou de gritos, de gestos obscenos, de discussões com árbitros, de aproveitamento mediático para soundbites sem sentido, de proteção incoerente dos órgãos de comunicação social. E ainda viveu na era da globalização, das tecnologias de massas e das redes sociais vorazes.

As suas conferências de imprensa terminavam quase sempre com um sorriso e com um cumprimento especial aos profissionais dos “media”, independentemente dos resultados, da posição pontual da sua equipa ou das questões mais ou menos estruturantes e inteligentes colocadas pelos jornalistas. 

Dir-se-á que, ao contrário do que se poderia pensar, o verdadeiro media training era lecionado por Sven, ao invés de o receber de um qualquer assessor (que, na realidade, aprenderia muito mais do que ensinaria, ao lidar com o treinador sueco)…

Na disrupção e no entendimento global do jogo, na componente científica agregada ao treino e aos diversos momentos da gestão de uma equipa profissional de futebol, vejo Sven equiparado a um português de exceção (e talvez por isso tão vilipendiado no seu país): Carlos Queiroz, o homem que, verdadeiramente, virou a bissetriz de entendimento de uma equipa de futebol para um plano avançado, global, interdependente, científico, agregado.

Em 2024 é fácil perceber o quão dependentes estão todos os setores a montante e a jusante do processo competitivo. Há vinte ou trinta anos essa era uma tarefa para visionários. E implementar os modelos adequados, apenas para alguns atrevidos.

Estas foram as diversas lições de Sven, o escandinavo razoavelmente emotivo que deixou uma áurea de muito mais sucesso fora do retângulo de jogo, nos bastidores dos clubes e seleções por onde passou, do que propriamente dentro dele. E esse é o maior elogio que lhe podemos fazer e reconhecer.

Alguém que não olhou para recordes individuais, mas para o interesse do coletivo em face dos desafios que se lhe colocavam. 

Alguém que esteve sempre à frente do seu tempo, não necessitando de holofotes para provar o que valia, a consistência das suas ideias ou a bonomia do seu caráter.

Um Senhor, o Sven. 

No timbre de voz, no sorrido tímido, na imensa sabedoria, na intensa vontade de viver. Essa é a sua última lição. E que ficará para sempre.

Cartão branco

 

Sabemos bem o que são as Galas de início de temporada. Uma passerelle de algumas vaidades, uma oportunidade para aparecer e dar lustro aos sapatos mais brilhantes.

Mas são, igualmente, ocasiões para aproveitar bem, em face do desmesurado interesse mediático que provocam. 

Rubem Amorim fê-lo da melhor forma, com um discurso invulgar (porem aguardado, porque o técnico campeão nacional é um dos dois ou três efetivamente bons comunicadores no panorama do futebol nacional).

Ao ser inclusivo, ao envolver toda a equipa, ao motivar, ao reconhecer, ao dar força e forma ao sentimento coletivo que legitimou o seu prémio, Amorim destacou-se, deixou uma mensagem de qualidade no discurso e no conteúdo, e mostrou que o domínio transversal de várias facetas colaterais ao jogo é tanto (ou às vezes mais…) importante do que os três pontos no retângulo…

Cartão amarelo

Quase, quase vermelho. 

Abel, o que foi aquilo?… Que resposta desmesurada, viciada, inquinada, com laivos de misogenia, foi aquela à jornalista brasileira?…

Percebo a pressão que o Brasil provoca. Já vivi no país, sei o que sofrem os profissionais de futebol estrangeiros às mãos e às críticas da comunicação social brasileira.

Mas exatamente por isso, e pelo hábito de anos a vencer, o técnico português terá cometido a maior imprudência do seu consulado de sucesso à frente do Palmeiras.

A jamais repetir.