OPINIÃO As figuras de 2023
Devemos olhar para o exemplo de Bernardo Silva, mas sem esquecer o exemplo de Cristiano
Nem todas são figuras com assinatura hoje no futebol português, mas todas estão ligadas a Portugal, pela nacionalidade ou pelo trabalho. São, do nosso universo, as minhas figuras de 2023.
Bernardo Silva
A nomeação do craque português como «Figura do Ano» para A BOLA é mais do que merecida, depois de ter feito parte de todas as notáveis conquistas do Manchester City em 2023. Tudo o que o City ganhou, ganhou Bernardo, no sentido em que jogou em todas as competições e em todas as finais. Um fantástico ano a que juntou ainda a participação, pela seleção, numa irrepreensível fase de qualificação para o Europeu.
Talvez já poucos se lembrem, mas Bernardo Silva é dos poucos jogadores a vencer tudo o que Pep Guardiola venceu no Manchester City. São, no total, desde a época 2017/2018, 16 conquistas, e de todo este tempo restam apenas, além do genial português, o guarda-redes brasileiro Ederson, os ingleses Kyle Walker, John Stones e Phil Foden, e o belga Kevin de Bruyne. Com algumas diferenças, porém: Phil Foden, por exemplo, dava ainda, em 2018, os primeiros passos na equipa quando chegaram os primeiros títulos, e o inigualável De Bruyne não pôde estar, devido a lesão, nesta primeira vez que o City se sagra campeão do mundo de clubes. Bernardo, porém, esteve em todas e em todas com estatuto de titular.
Um caso invulgar de talento, de compreensão e interpretação do jogo, no sentido tático da posição e na organização coletiva, de inteligência nas tomadas de decisão, e ainda, last but not least, um caso invulgar na forma simples como olha para a vida de profissional de futebol e como assume o respetivo (pouco e discreto) protagonismo que é dado hoje a qualquer uma das grandes figuras do futebol mundial, como Bernardo Silva, indiscutivelmente, é.
Na excelente entrevista que acaba de conceder a A BOLA, confirmam-se os traços de personalidade que fazem de Bernardo Silva uma figura diferenciada no mundo tão glamorouso do futebol moderno. Nenhuma resposta de Bernardo Silva é vazia de conteúdo. Percebe-se que nunca diz nada por dizer, e, sentindo o que diz, diz apenas o que lhe faz sentido. Vale tanto a pena admirá-lo em campo, como dar-lhe atenção fora dele.
Viktor Gyokeres
Os números dizem muito, mas não dizem tudo sobre o verdadeiro impacto que o jovem internacional sueco tem tido, ao cabo de apenas meia dúzia de meses, na equipa do Sporting e na Liga portuguesa.
Sou de há muito um quase incondicional admirador do futebolista nórdico, não pelo virtuosismo, como se percebe, mas pela mentalidade, foco, espírito de equipa, entrega competitiva. Regra geral, o futebolista nórdico bebe muito da cultura do futebol britânico e cresce com o mais autêntico espírito do association, ou seja, é formado como jogador para dar tudo o que tem a pensar na equipa e não a pensar nele próprio.
Viktor Gyokeres é, até ao momento (a par de João Neves), o melhor jogador do nosso campeonato, um avançado que consegue, ao mesmo tempo, ser poderoso do ponto de vista atlético e ter surpreendente mobilidade, é forte no jogo aéreo e no remate, tanto é eficaz de costas para a baliza como a atacar a profundidade, e sabe como usar o corpo para proteger a bola sempre que lhe falta, por exemplo, alguma daquela mais distinta qualidade técnica dos latinos.
Foi uma grande contratação do Sporting e sublinho que os números (16 golos em 19 jogos até agora) estão longe de explicar tudo o que vale para a equipa de Rúben Amorim.
João Neves
Parecem-me esgotadas todas as qualificações, e todos os adjetivos, para definir o jovem que Roger Schmidt tornou titular do Benfica, em abril deste ano, num jogo da Liga, com o Estoril. João Neves (a par de Gyokeres) é, até ao momento, o melhor jogador do campeonato, e esse, creio, é mesmo o melhor elogio que se lhe pode fazer. Como Gyokeres, também Neves teve um impacto brutal na equipa do Benfica e hoje, garantidamente, já ninguém imagina o jogo das águias sem ele.
Aos 19 anos, e em poucos meses de competição ao mais alto nível (que já o levou ao título de campeão nacional, à Liga dos Campeões e à Seleção Nacional), João Neves é um verdadeiro Golias no corpo de David, um gigante em cada jogo e pelo que dá, pelo que mostra ser, pelo espírito que tem, bem merece o que está a viver e todos os elogios que até agora lhe foram dirigidos.
Cristiano Ronaldo
A menos de dois meses de completar 39 anos, ninguém consegue imaginar até onde chegará ainda o fenómeno Cristiano Ronaldo. Fecha 2023 como o maior goleador do ano, com 53 golos em 58 jogos, seguido de Mbappé (52 em 53 jogos), Kane (52 em 57 jogos) e Haaland (50 golos em 60 jogos). Vale o que vale, tendo em conta que Cristiano joga na Arábia Saudita e os outros em França Alemanha e Inglaterra. Mas nem o futebol, na Liga saudita, é assim tão pouco competitivo (como podemos ir confirmando), nem os rivais de Ronaldo têm, como ele, 38 anos!!!
Chegam-me, entretanto, através de alguns leitores, dúvidas sobre o real valor dos 53 golos de Cristiano Ronaldo comparativamente com o número de grandes penalidades que concretiza. Pois bem, dizem as estatísticas o seguinte: dos 53 golos de Cristiano, 14 foram de penálti; dos 52 golos de Mbappé, 12 foram de penálti; dos 52 golos de Harry Kane, 11 foram de penálti; dos 50 golos de Haaland, 12 foram de penálti. Números muito próximos, portanto, uns dos outros. Será, assim, justo diminuir mais este notável registo de Cristiano Ronaldo? Ele não é só o goleador do ano; é, por todas as razões e mais uma, das grandes figuras de 2023, como foi, quase sempre, aliás, dos últimos 20 anos.
Que sorte a nossa, termos testemunhado isso!
Abel Ferreira
O que sempre mais me impressionou em Abel Ferreira foi a forma como fala e parece chegar ao coração dos outros. Não posso, evidentemente, avaliar-lhe a qualidade do trabalho a não ser, como sempre, pelos resultados e, no caso do Brasil, pelo inacreditável sucesso que alcançou. Mas é inegável o impacto do que diz, e de como diz, o que parece ser, realmente, sempre o que pensa, sem parecer pensar muito no que diz, o que torna a comunicação de alguém realmente mais poderosa, porventura mais sentida, quase sempre mais ouvida, como é o caso do que é ouvido e do que nos vai chegando do lado de lá do Atlântico sobre o que vai dizendo Abel Ferreira, nos momentos de sucesso que o treinador português tem vivido no futebol brasileiro e sul-americano (é o único treinador, nos últimos 20 anos, a vencer a Libertadores duas vezes consecutivas), e os momentos de sucesso têm sido muitos, mas também nas ocasiões mais difíceis, stressantes e desoladoras, que sempre acompanham, também, a vida de um treinador de futebol.
Voltou agora a vencer um dos mais difíceis campeonatos de futebol em todo o mundo, com final dramático, apenas decidido na última jornada, quando parecia, não há muito tempo, irremediavelmente perdido para o Palmeiras do português Abel Ferreira.
Podia, pois, não ser ele, mais uma vez, uma das grandes figuras do ano?
Roberto Martínez
Para primeiras impressões dificilmente o selecionador de Portugal poderia ter-se saído melhor. Causou logo uma primeira boa imagem, prima pela simpatia, deu extrema importância ao procurar expressar-se em português (percebendo que cairia muito bem, em geral, nos portugueses, adeptos ou não de futebol) e conduziu a Seleção Nacional a uma histórica fase de qualificação. Fácil? Difícil? Assim-assim? Ganhar, no futebol, é cada vez mais duro.
Pode o espanhol Roberto Martínez não ter ainda ganho nada com especial impacto; mas nunca ninguém tinha conseguido o que ele já conseguiu e isso nunca pode ser visto como algo menor.
Martínez parece ter ganho o coração dos adeptos e o coração da equipa. Já é um bom caminho andado.
Rui Costa
Lembro-me de ouvir alguém do futebol lembrar um dia que o mais importante quando se ganha, já não é o que se ganha, mas o que se segue. Diria mesmo que, além de mais importante, o que se segue a ganhar é também o mais complicado. Creio que o presidente do Benfica, até por toda a larga e excecional experiência que tem no futebol, sabe muito bem o que significa enfrentar o tempo que se segue ao sucesso.
O ano de 2023 marca o primeiro título de campeão nacional de Rui Costa como presidente de corpo inteiro da maior nau do desporto português e seguramente um dos clubes mais difíceis de dirigir em todo o mundo.
Ganhou Rui Costa o seu primeiro grande desafio. Mas creio que saberá o presidente encarnado como o mais complicado não é viver o sucesso, mas conviver com ele. E, sobretudo, repeti-lo.