Arbitragens: os erros que não se podem repetir
Com a introdução do VAR o avaliar 'in loco' passou a ser apoiado pela avaliação à distância (Imago)

Arbitragens: os erros que não se podem repetir

Porque é que árbitros experimentados, com qualidade comprovada e no topo da sua carreira, ainda falham em situações factualmente inequívocas, tendo o apoio da tecnologia?. 'O poder da palavra' é o espaço de opinião semanal de Duarte Gomes

As boas e más decisões são uma constante em quem assume corajosamente o papel de ajuizar lances de futebol. Os jogos, sobretudo os de topo, são de enorme exigência técnica e disciplinar, o que torna o trabalho dos árbitros muito difícil. Além disso, o resultado final é frequentemente percecionado de forma emocional, o que não ajuda a compreender a função do mais atacado dos agentes desportivos.

Mas esta constatação, que eu próprio vivenciei ao longo da carreira, não pode nem deve desresponsabilizá-los daquele que deve ser o seu compromisso maior. Pelo contrário. Deve motivá-los no sentido de tentarem a superação com mais e melhores performances, sabendo que a perfeição ali é utopia inalcançável.

O certo é que nas últimas jornadas, em particular nesta última, duas ou três más avaliações sobressaíram pela forma evitável como foram cometidas: umas em lances muito claros, sem que os respetivos videoárbitros recomendassem a obrigatória revisão; outras em infrações evidentes que os árbitros optaram por validar depois de reverem imagens que as desmontavam de forma inequívoca.

Não tenhamos dúvidas: são (também) este tipo de vereditos, incompreensíveis aos olhos de quase todos, que potenciam velhas desconfianças sobre integridade e isenção. E os árbitros, que são pessoas de bem e profissionais sérios — que ninguém tenha dúvidas disso! — não se podem pôr a jeito desta forma.

O que me parece é que é preciso perceber e atacar na base os porquês. Porque é que árbitros experimentados, com qualidade comprovada e no topo da sua carreira, ainda falham em situações factualmente inequívocas, tendo o apoio da tecnologia? O que é que acontece em campo ou em sala que tolda momentanemente o seu discernimento, levando-os a tomar a única decisão que ninguém espera nem entende?

Estes casos pontuais — são pontuais, felizmente — têm que passar por algumas destas justificações: falta de concentração/foco na tarefa, incapacidade momentânea para assumir decisão contrária à inicial (bloqueio, negação, etc), pura teimosia (?), insegurança, inexperiência ou apenas mera incompetência de análise (má leitura do lance, má aplicação das regras ou incapacidade em perceber o que o jogo pede, o que a situação exige).

Tudo isso não deve acontecer a este nível e tudo isso trabalha-se. Trabalha-se com treino consistente e continuado. Com treino persistente e insistente. Treino físico, técnico, tático, psicológico e emocional. A ver vídeos, a analisar as próprias decisões, a repetir situações em campo e a trabalhar tudo isso na cabecinha e no coração. Uma, duas, cem vezes.

O advento da videoarbitragem veio introduzir uma modificação profunda de hábitos há muito enraizados. Com a introdução do VAR o avaliar in loco passou a ser apoiado pela avaliação à distância e, por muito bom que isso seja para todos, pressupõe encaixe para abraçar novas formas de decidir. Agora é (também) preciso saber ouvir e comunicar sob pressão com alguém que não está lá, é preciso interpretar lances através de imagens (tantas vezes enganadoras), é preciso escolher ângulos e zooms de forma eficiente, é preciso aceitar interiormente que se errou corrigindo avaliação inicial, é preciso assumir para si que a avaliação no jogo ficará afetada quando a primeira decisão for alterada, enfim, é preciso muita, muita coisa. Isso é algo que não se aprende nem se ensina de um dia para outro.

Quem arbitra, tal como quem joga ou treina, tem a sua personalidade, o seu feitio, as suas resistências, a sua forma de ser e de estar e é essa que projeta em campo.

Mas os árbitros têm cada vez mais de entender a enormíssima responsabilidade que a função exige. E essa responsabilidade é muito vasta, tem muita exposição e uma dose tremenda de injustiça.

É por ser assim que, de facto, não se podem pôr a jeito. Quando entram em campo ou quando fecham as portas da sala VOR, têm obrigatoriamente que entrar em modo foco absoluto. Têm que dar tudo por tudo. Têm que se despir de tiques, de maneirismos e trejeitos, de objetivos pessoais. Têm que perceber que estão apenas ao serviço da verdade desportiva. Não são um fim, são um meio. Apenas um meio.

Só essa forma perfecionista e distante de encararem a sua tarefa missão os colocará mais perto da eficácia máxima.

A este nível, há erros que não podem acontecer.