Amorim: o pacote completo pode acabar no destino errado (e não ser suficiente)
Treinador domina o treino e os lados estratégico, psicológico e comunicacional, mas o Liverpool está demasiado ligado ao alemão com quem mantinha o casamento perfeito
Rúben Amorim é, amigos, o pacote completo. No campo de treinos, no banco e na sala de imprensa. Um mestre do autocontrolo num mundo desgovernado, em que perder significa muito mais do que três pontos e ganhar tão menos do que isso. Um equilibrista sereno em cima de uma corda de aço, sem rede por baixo, entre arranha-céus. Alheio ao vento que muda de direção, à tempestade sempre próxima que ganha forma no horizonte, ao silêncio que esvazia o mundo que o rodeia a si e a qualquer outro treinador. Onde vai um vai todos, diz e repete, enquanto olha para trás. E todos os seguem entusiasmados em Hamelin.
Por 10 milhões chegou, talvez agora saia por mais. Antes de Alvalade, levava apenas 13 jogos de SC Braga. Bateu Benfica e Sporting no campeonato e novamente os leões antes do FC Porto para conquistar a Taça da Liga. Na despedida, goleou por 7-1 a B-SAD. Mais atrás, um punhado de encontros, poucos, de equipa B e Casa Pia. A transferência desafiava tanto a lógica que continuou a contrariá-la ele próprio. Sem estatuto ainda que sustentasse exigências, quis um clube a uma só voz e só a sua quase passou a ser ouvida. Tornou-se um maníaco do controlo, com uma missão: evitar consequências negativas direta ou indiretamente provocadas por quem nestas pouco pensa e mal aguenta o coração ao pé da boca. Assumiu o desgaste, valendo-se de numa racionalidade de fazer inveja, fosse em gestão de crise ou de sucesso, em tiradas preparadas ou apenas reativas. Ao circunscrever as intervenções ao lado mais institucional, também Frederico Varandas parece hoje mais assertivo e capaz de provocar impacto, onde antes havia apenas ruído e incapacidade de gerar empatia.
Com um discurso sempre no tom, embora, ao mesmo tempo, sem medo de olhar para dentro e falar com abertura, Amorim conseguiu ao longo destes anos nada oferecer aos rivais, uma frase que fosse, que pudesse ser colocada no balneário antes das partidas. Nada o perturbou ao ponto de perturbar alguém. Sempre defensivo, porém nunca vazio, encontrou rapidamente o caminho mais equilibrado para o discurso, quase se abstraindo de emoções que posteriormente pudessem ser jogadas contra si e contra os seus. Os tiros dos mind games caíram, ou pareceram cair, quase sempre ao largo do seu porta-aviões. E o mérito não pode ser atribuído a mais ninguém.
A gestão de um balneário em que os maiores egos - Slimani, à cabeça - foram desaparecendo reuniu todos os jogadores à sua volta, mesmo quando o momento não era para tanto. A verdade é que todos subscreveram e acreditaram no processo e este, por vezes, diga-se, se apresentou insuficiente. Depois, havia aquela capacidade de reagir, como se de lances de xadrez se tratasse, às jogadas do adversário, que tem de lhe ser reconhecida. Há ali uma capacidade de ler o jogo que já reequilibrou dérbis e clássicos, e garantiu vitórias.
Amorim é, repito, o pacote completo. Mas mesmo um pacote assim pode chegar ao destino errado e não servir. Chama-se a isso contexto. Em Anfield, este é bem especial.
O Liverpool, enquanto questão que se coloca, não tem respostas corretas ou erradas. Seria impossível recusá-lo mesmo que se soubesse, desde o início, que se iria falhar. Ainda mais, não o sabendo. Todos nós temos consciência de que, por vezes, aquele comboio poderá não passar outra vez. Milhares de situações aleatórias podem acontecer e a linha pode inclusive ser descontinuada para que circule um TGV que só se detenha nas principais estações. Já Xabi Alonso tem a certeza de que estará pronto da próxima vez, contudo a Bundesliga não é um mero apeadeiro. Assim, é até mais fácil ter tanta fé.
Liverpool é Klopp e vice-versa, por muito que o alemão já tenha sido do tamanho de Dortmund. Não foi preciso ganhar muito, bastou ser igual a si próprio e deixar-se envolver pela paixão que transborda da Kop, do resto das bancadas e da própria cidade. Hoje, o clube e ele são um só, e a separação, daqui por semanas, será brutalmente dolorosa para todos. Cada jogo em casa tem sido, entretanto, uma pequena despedida. Os adeptos irão sentir a carne a rasgar, Klopp vai acordar vazio, sem alma, esperando que a família o volte a encher, recuperando-se todo o tempo passado longe desta. Se aceitar a missão, Amorim será um corpo estranho que o hospedeiro começará por recusar. E se é inteligente e control freak como poucos, não será fácil, mesmo assim, encontrar a medida certa entre a sua racionalidade natural e a emoção que terá de entregar. Isto sem se tornar em má cópia ou numa forçada do antecessor. A mudança, a esta distância, parece quase impraticável. Quase impossível. Mesmo para Rúben.
Não são os três centrais, é tudo o que está daí para a frente, com egos faraónicos à mistura. E, ele, apenas um Mourinho wannabe, por muito que não o queira e o rótulo seja injusto, ainda sem coroação europeia. É a pressão em ato contínuo, sem pausas, as dinâmicas de meio-campo e ataque, e o que as sustenta, os jovens scousers que agora vêm de Kirkby e que todos os adeptos querem ver no onze. É o tackle deslizante, festejado como se de um golo se tratasse, em uníssono, pelo pai e pelo filho de 14 anos, pontuado pelo vernáculo que, dentro e fora de campo, não tem idade. O furor em cada transição. O rugir da vertigem de um futebol que seria capaz de fazer chover no deserto, com aquela dança interminável. Duvidam? Já o tentaram?
Sim, é possível ser-se o pacote completo e, mesmo assim, não parecer suficiente. Tanto quanto o Liverpool pode bem ser o destino perfeito e, para já, não servir para mais ninguém que não responda por... Jürgen. O parceiro de vida.