A suspeita!

OPINIÃO23.06.202306:30

O futebol português não está doente por causa dos assobios dos adeptos

A forma como no futebol português se promove facilmente a suspeição é absolutamente aterradora. Muitas vezes por tudo, outras por nada, a verdade é que no futebol português somos todos um bocadinho suspeitos de alguma coisa. Suspeitos de traficar influências - porventura o comportamento mais comum na sociedade portuguesa nos últimos 50 anos -, de cunhas, de abuso de poder, ou pior, de branquear, falsificar ou corromper, seja na tentativa, seja no concreto.

O futebol português foi, apesar de tudo, evoluindo alguma coisa nos últimos anos, mas sobretudo na qualidade de jogadores e treinadores. Quanto ao jogo, há os que defendem ter melhorado taticamente, sim, mas há também os que observam que piorou tecnicamente, por se ter tornado um jogo mais físico, mais atlético, menos aprimorado, mais amarrado e menos elegante, mais robusto e menos ousado e criativo.

O que parece claro, entretanto, é termos melhorado muito pouco do ponto de vista da transparência, organização, respeito, ética e do ponto de vista da integridade da própria competição, porque não diminuíram as suspeitas nem se desintoxicou o ambiente, bem pelo contrário, há conflitos mais agudos, atmosferas mais agressivas, intolerâncias mais incompreensíveis e, nalguns casos, as mesmas bolorentas suspeitas de 40 anos disto…

Foram, por exemplo, divulgadas as classificações dos árbitros (e auxiliares) da 1.ª categoria, e logo se tornou inevitável reparar na despromoção do árbitro Vítor Ferreira, exatamente aquele a quem o diretor do futebol do FC Porto, Luís Gonçalves, ameaçou agressivamente após ser expulso no jogo dos dragões com o Rio Ave, jogado em fevereiro.

Pode, evidentemente, a despromoção de Vítor Ferreira à 2.ª categoria nada ter a ver com as ameaças verbais de Luís Gonçalves. Mas o País fica em suspenso, agarrado à suspeita por não saber também as verdadeiras razões e critérios e avaliações e penalizações a que o árbitro foi sujeito para merecer, no fim, nota suficientemente negativa para não conseguir manter-se entre a elite dos árbitros portugueses.

O que o País sabe, e foi, em parte, testemunha pela transmissão televisiva daquele FC Porto-Rio Ave de fevereiro, é que Luís Gonçalves prometeu ajustar contas com o árbitro Vítor Ferreira por Vítor Ferreira lhe ter mostrado o cartão vermelho e, desse modo, expulsado o dirigente portista do jogo do Dragão.

Imaginem que um jogador, no exato momento em que recebe ordem de substituição, ameaça verbalmente o treinador (de forma absolutamente visível pela televisão) e deixa, nos jogos seguintes, de jogar. Se não soubermos que outras eventuais razões o afastaram da equipa é ou não legítimo que suspeitemos que deixou de jogar por ter ameaçado o treinador?!

H Á muito que o futebol se tornou um espetáculo, sobretudo, televisivo, mas nos últimos anos, esse espetáculo televisivo passou a pagar o futebol com tal dimensão que passámos a ver tudo o que sucede num campo de futebol. Ou quase tudo. A vermos e a ouvirmos.

Ainda no último Campeonato do Mundo, Cristiano Ronaldo acabou por pagar relativamente caro aquela meia dúzia de palavras (até bastante inofensivas) com que desabafou na hora de ser substituído pelo então selecionador Fernando Santos, porque não pôs a mão à frente da boca e isso foi o suficiente para termos percebido (e ouvido) tudo, ao contrário do que acontecia há um par de anos.

O tribunal do vídeo, como tantas vezes lhe chamei, pode hoje mostrar um lado mais verdadeiro do próprio jogo, mas pode também ser mais cruel. É o verso e o reverso. Os dois lados de uma moeda muitíssimo confortável para quem está em casa e quer ver absolutamente tudo, mas capaz, também, de certo modo, de contribuir para maior controvérsia e para desvirtuar até a inevitável subjetividade do próprio jogo.

A televisão mostra mais do que aquilo que se vê, no estádio, ao vivo, e nesse sentido é um trunfo importante não apenas para o consumidor, como para a tal maior verdade do espetáculo. Se um dirigente, como o portista Luís Gonçalves, por exemplo, ameaça um árbitro ou se vê agarrado para não piorar as consequências da sua cólera, e tudo isso se passa nas barbas de uma multidão caseira, o tal tribunal do vídeo pode ser implacável. Porque testemunha, e grava, tudo.

M OSTRANDO mais, seria bom, porém, que compreendessemos igualmente que, do ponto de vista do jogo, nem sempre a televisão mostra realmente toda a verdade dos factos. Pela televisão, somos suscetíveis de ser iludidos. A televisão também engana, apesar das repetições, das imagens lentas, do frame a frame.

Na veerdade, nem sempre o que parece, é, e pela imagem televisiva isso ganha ainda mais expressão. Há uma percentagem, por mais pequena que seja, de ilusão de ótica, e nesse sentido, o futebol televisivo será sempre mais polémico e controverso, porque nos levará algumas vezes a ver o que, ao vivo, não acontece exatamente assim.

Terá sempre a televisão o lado bom, o de escrutinar e permitir desfrutarmos do espetáculo com o pormenor que ao vivo nunca teremos, mas terá também o lado mau, o de amplificar por vezes uma discussão cega, negativa e estéril.

Seja como for, num e noutro caso, temos de nos habituar à ideia de que o futebol, e não apenas o futebol, será cada vez mais um espetáculo televisivo, através da qual o consumidor que o paga fará também cada vez mais o julgamento que entender.

Seria bom que todos o compreendessem, porque isso evitaria, pelo menos, que se cometessem muitos dos (excessivos) erros que se cometem, alguns dos quais absolutamente indecorosos, inqualificáveis e reprováveis, como os de uma certa violência verbal ou gestos de profunda e colérica irracionalidade, que ultrapassam muitas vezes o limite do aceitável e do compreensível.

Talvez pudéssemos, assim, e no mínimo, deixar de testemunhar, em direto, pelo menos alguns dos mais lamentáveis episódios de mau comportamento, falta de ética e abuso de poder e agressividade, como os tidos pelo diretor do futebol portista quando ameaça, por exemplo, árbitros, e, sobretudo, deixaríamos de poder suspeitar que por causa de lamentáveis ameaças desse tipo, um pobre árbitro pode ser castigado e despromovido, como acabou por ser o árbitro Vítor Ferreira.

A verdade dói, mas é a verdade. A suspeita é corrosiva e doentia. O que é bem pior!

Por isso, enquanto alimentar suspeitas, enquanto não promover um regulamento disciplinar a sério, se continuar a ser menos transparente do que devia, o futebol português vai continuar doente, com tendência, aliás, a ver agravar-se o seu estado de saúde. Basta imaginar a atmosfera em que vai decorrer o próximo campeonato e basta pensar como vai ser a competição pelo único lugar, o de campeão, que apura diretamente para a Liga dos Campeões e lhe confere o direito a receber por isso uma pequena fortuna de prémio.

N ÃO se diga, a propósito, como deu, precipitada e incompreensivelmente, a entender o selecionador Roberto Martínez, que o futebol português mostra doença só por alguns adeptos terem resolvido manifestar-se (com inadequados assobios e no errado lugar da Seleção, é certo) contra um jogador (Otávio) que nem sempre mostra, realmente, respeitar o profissionalismo que o sustenta.

Para competir bem não é preciso ser mau. Há os que falam de inimigos, como o presidente portista, e há os que, saudavelmente, respeitam os adversários. Há os que agridem e há os que se indignam.

Deixo, a propósito do tema, uma pergunta: teria Otávio comportamento igual ao que tantas vezes mostra na Liga portuguesa e na relação com os clubes rivais se jogasse (como a sua qualidade amplamente justificaria) nalguma das grandes ligas europeias?

Não creio. Mas creio que isso já diz alguma coisa sobre a doença do futebol português!

PS: Não me confesso propriamente um fã de futsal, mas há muito que admiro o campeoníssimo treinador de futsal do Sporting, Nuno Dias, que acaba de levar a equipa ao tricampeonato e ao histórico 18.º título de campeão. Ninguém ganha tanto por acaso. Ou por ter sorte. Ou mesmo por trabalhar muito. Quem ganha tanto só pode ser o melhor. E, como diz Guardiola, só pode ter grandes jogadores. Mas mesmo com enormes jogadores, Nuno Dias, parece-me, deve ser mesmo o melhor treinador de futsal do mundo!