A saúde mental

A saúde mental

OPINIÃO14.07.202306:25

Delle Alli, que chegou a ser jogador de José Mourinho, volta a centrar o debate

O surpreendente testemunho do futebolista internacional inglês Delle Alli, de 27 anos, numa conversa franca com outro antigo jogador de futebol e lenda do Manchester United, Gary Neville, traz de novo para o centro da mesa o debate sobre a saúde mental dos atletas de alta competição e coloca em perspetiva a exigente pressão a que estão sujeitas, sobretudo, as mais mediáticas e mais bem pagas estrelas da atualidade, num domínio em que o dinheiro está, realmente, muito longe de resolver todos os problemas.

Delle Alli, um jovem inglês de ascendência nigeriana, confessa agora muitos dos horrores da sua vida, desde o abuso sexual de que foi vítima em criança, aos maus caminhos da droga, até aos mais recentes momentos depressivos que o levaram a recorrer, mais uma vez, aos comprimidos, mas também às bebidas alcoólicas, para controlar ansiedade, descontrolo emocional e noites sem dormir. O jogador, dos quadros do Everton, esteve emprestado ao Besiktas, da Tuequia. Mas uma lesão voltou a obrigá-lo a questionar o futuro e a não ser capaz de se dominar. O resultado, confessou-o agora, foi o internamento numa clínica de reabilitação, onde permaneceu por seis semanas.

A decisão de confessar agora tudo pelo que tem passado ao longo de uma vida aparentemente fácil e luxuosa, faz de Delle Alli outro exemplo da evidente necessidade dos atletas de alta competição darem mais atenção à saúde mental, recorrentemente ignorada quando tudo parece correr bem no campo de uma vida recheada de fama, dinheiro e (efémero) sucesso.

Delle Alli foi jogador de José Mourinho no Tottenham, nos anos de 2020 e parte de 2021, mas nessa altura já se tinham ofuscado as gloriosas épocas entre 2015 e 2018, que tornaram o jogador numa das maiores estrelas da equipa e do próprio campeonato, tendo sido chamado à seleção para as fases finais do Euro-2016 e Mundial 2018. Há mais de dez anos, Delle Alli custou ao Tottenham cinco milhões de libras (quase seis milhões de euros, ao câmbio atual), uma grande contratação num jogador que confirmaria enorme talento. Pelo Tottenham, fez quase 270 jogos, marcou mais de 60 golos e ainda registou mais de 60 assistências. Mas nem sempre o sucesso esconde os demónios.

Recordo, aliás, num vídeo que ainda hoje corre pelas redes sociais, uma conversa de Mourinho com Delle Alli, quando, no final de 2019, o treinador português chegou ao Tottenham. Nessa conversa, Mourinho tenta compreender o que se passa com o jogador, diz-lhe que todos deixaram de ver o melhor Delle Alli e o jogador limita-se, em silêncio, a mostrar um olhar triste.

Agora, Delle Alli assume ter chegado a essa altura, com 24 anos, e pensado abandonar o futebol. «Uma manhã, acordei, tinha de ir treinar e lembro-me de olhar para o espelho. Pode soar dramático, mas é a verdade. Olhei no espelho e perguntei-me se devia retirar-me naquela altura. Aos 24 anos. Deixar de fazer o que mais amava. Aquilo partiu-me o coração. Estava numa fase péssima», confessou agora Delle Alli no programa da Sky Sports britânica ‘Overlap’, conduzido pela antiga estrela do Manchester United, Gary Neville. «Eu ia treinar, fingia que estava a ganhar a luta, sorria, mostrava que estava feliz, mas por dentro, definitivamente, estava a perder a batalha».

Delle Alli foi-se debatendo cada vez mais com os problemas de saúde mental e conta que recorreu a tudo para conseguir dormir, fosse álcool ou qualquer outra coisa... «A verdade é que desenvolvi um vício em comprimidos».

Os demónios de uma infância tormentosa, agravada pelo abuso sexual, aos 6 anos de idade, agora revelado pelo próprio jogador, mais o contacto com a droga a partir dos 8 anos, ajudam certamente a explicar muita da instabilidade emocional e psicológica que passou a perseguir Delle Alli a partir de certa altura, sem que ninguém fosse capaz de o compreender ou ajudar.

Foi em lágrimas que Delle Alli fez, por fim, a confissão mais revoltante: «Não falo muito da minha infância, mas alguns acontecimentos podem ajudar a explicar algumas coisas. Quando tinha 6 anos fui abusado por um amigo da minha mãe, que ficava muito lá em casa. Porque a minha mãe era alcoólica».

Delle Alli decidiu, agora, finalmente, recorrer à ajuda de profissionais e viu-se internado, por seis semanas, numa clínica de reabilitação para saúde mental e traumas. «Talvez seja a primeira vez em muito tempo que posso dizer que estou bem. É um bom momento para contar às pessoas o que aconteceu».

A ajuda devolveu-lhe a paz interior que precisava e a paz trouxe-lhe a coragem de falar. Nada mais compreensível!

F ELIZMENTE, são cada vez mais os atletas atentos às questões da saúde mental e que procuram ajuda de profissionais verdadeiramente especializados em psicologia clínica, de acordo com os perigos que espreitam a cada esquina do sucesso, da pressão, da fama, do dinheiro, das exigências de uma profissão cada vez mais industrializada, mas também dos traumas, das infâncias difíceis, dos problemas definitivamente mal resolvidos do passado.

O guarda-redes argentino Emiliano ‘Dibú’ Martínez, por exemplo, uma das grandes figuras da campeã mundial Argentina, sempre que pode alerta para as questões da saúde mental e para a necessidade de todos os jogadores procurarem apoio psicoterapêutico. Está a tornar-se um exemplo. Martínez diz que o treino mental tem sido absolutamente essencial para a sua preparação como jogador profissional muito antes de se destacar na Liga inglesa ou na seleção argentina, e revela estar a ser acompanhado, há quatro anos, pelo psicólogo David Preastley.

Há uns tempos, Martínez contou numa entrevista, na Argentina, ter sido em criança vítima de bullying na escola. Felizmente para ele, já então mostrava grande autoconfiança e muito foco mental para se defender: «Gozem agora, enquanto podem. Vocês, não sei, mas eu vou jogar na Europa e ser guarda-redes da seleção argentina», conta Martínez que respondia quando era pequeno.

Martínez chegou a Inglaterra com apenas 17 anos, para integrar o Arsenal. Foi sendo emprestado anos a fio a clubes de divisões secundárias, e não se pode dizer que tenha jogado muito nos gunners. Mas nunca perdeu a fé nem, pelos vistos, o equilíbrio mental, e quando em 2020 aceitou transferir-se para o Aston Villa estava pronto a afirmar-se. Como se afirmou.

É essa autoconfiança que o internacional argentino nunca quis perder e por isso recorreu ao apoio psicoterapêutico. «Hoje, a minha cabeça está mais centrada que nunca, ganhando ou perdendo. Com o que exige o futebol mundial, creio que todos os jogadores precisam de um psicólogo», contou Martínez, por exemplo, numa entrevista conduzida por outra antiga estrela do Arsenal, o ex-atacante Ian Wright.

Outro exemplo é o do internacional espanhol Nacho Fernandez, jogador do Real Madrid desde sempre. Nacho, de 33 anos, foi formado no Real e do Real nunca saiu. Acaba de renovar contrato por mais uma época com os madrilenos.

Pode, evidentemente, atribuir-se a muitos fatores a longevidade de Nacho no maior clube do mundo. A verdade é que sem nunca se ter afirmado como um titular, nenhum treinador prescindiu alguma vez dele, ao ponto de se ter tornado ainda um dos capitães do grupo. Jogue ou não, a verdade é que Nacho mostra estar sempre em boas condições de competir e só pode estar, também, em perfeito equilíbrio mental, porque de outro modo não teria conseguido suportar tantos anos na sombra de muitas outras estrelas.

Nacho já revelou como o acompanhamento psicológico foi sempre tão fundamental na gestão da sua vida desportiva e no modo de olhar para os todos os desafios que lhe surgiram, sobretudo do ponto de vista mental e emocional.

E mesmo sem nunca ter sido um dos ‘primeiros bailarinos’ da equipa, nada apagará o contributo de Nacho Fernandez para a conquista do Real Madrid de, por exemplo, cinco Ligas dos Campeões, cinco Campeonatos do Mundo de clubes e quatro Ligas espanholas.

Não valerá a pena olharmos todos, com olhos de ver, para as questões da saúde mental dos atletas de alta competição? Poderemos nós julgar que é preciso treinar a técnica, o físico, a tática e os automatismos do jogo, mas não é preciso treinar o mais importante, que é a mente?!

PS: Meter-se no mesmo saco e condenar-se por igual o que fez o benfiquista Neres e o que fizeram (tantas vezes) jogadores do FC Porto (ainda agora foi recordado o insulto às águias orgulhosamente exibido por Alex Telles quando jogou nos dragões...) é hipócrita, imprudente e desrespeita a integridade disciplinar de uma competição desportiva. Tão inaceitável e, ao mesmo tempo, tão revelador da baixa autoestima do nosso futebol, como a cumplicidade entre o ‘hacker’ Rui Pinto e o FC Porto, agora confirmada pelo Ministério Público, pelo envio para o universo azul e branco de emails de que Rui Pinto é acusado’ de ter ‘roubado’ ao Benfica e que os portistas sempre disseram desconhecer a origem. Pela amostra, vem aí, de novo, uma época capaz de afetar a nossa boa saúde mental. Oxalá esteja enganado!