A paixão

OPINIÃO03.02.202305:30

Imagino o que terão sido para Rui Costa estas últimas 48 horas de janeiro

P ONTO prévio, por muito que lhe custe acreditar, caro leitor: este artigo foi quase integralmente escrito antes da entrevista concedida, ontem, ao final da tarde, pelo presidente do Benfica, Rui Costa, ao canal de televisão do clube. O que foi escrito depois da entrevista está na parte final deste texto, e diz apenas respeito ao que me parece poder ser a reflexão ou análise a fazer pelos benfiquistas da intervenção de Rui Costa.

S capaz de imaginar o que foram, para o presidente do Benfica, Rui Costa, as últimas 48 horas de janeiro. Imagino Rui Costa muito tenso, perplexo, hesitante, ora confiante, ora desiludido, ora crente, ora frustrado, muito inquieto, e, por fim, resignado e conformado e, ao mesmo tempo, triste e zangado. A vida de um líder de um clube tão grande como o Benfica nunca será fácil, muito menos se esse líder, como parece ser o caso, for mais emocional que racional, mais apaixonado que empresarial, mais crente do que desconfiado. 

Com exatidão, dificilmente poderão os jornalistas saber o que se passou nos bastidores da sensacional transferência de Enzo Fernández para o Chelsea. Podemos admitir, presumir, imaginar, saber um ou outro pormenor, ora na versão de quem vendia, ora na versão de quem comprava. Mas creio não ser difícil concluir, porém, pela verdade, sobretudo, de dois ou três aspetos essenciais para se compreender, no fundo, toda a história: o presidente do Benfica tentou tudo, até ao último segundo, para que Enzo permanecesse na equipa encarnada até final desta época; Enzo fez tudo, passando, talvez até das marcas, para sair, de imediato, do Benfica; outros intervenientes no negócio a defenderem, natural e legitimamente, interesses, mas a procurar, imagino eu, conciliar o melhor possível as diferentes posições. Devem ter sido, na realidade, 48 horas absolutamente alucinantes e talvez o único ponto inevitavelmente não acautelado (pela impossibilidade prática de o conseguir a tão poucas horas do fecho do mercado) terá sido mesmo o da substituição de Enzo no plantel de Roger Schmidt. O Benfica, e em particular o presidente Rui Costa, terá acreditado tanto na permanência de Enzo que confiou não precisar de ir de novo ao mercado contratar um substituto que voltasse a equilibrar o plantel, que Rui Costa procurou tornar melhor com a surpresa Gonçalo Guedes e ainda os mais jovens nórdicos Tengstedt e Schjelderup.

Agora, sem Enzo e sem substituto, o Benfica, aparentemente e em teoria (é sempre em teoria que se analisa tudo isto até chegarem os resultados), passou a ter um problema desportivo, ainda que tenha ganho um notável conforto financeiro. Para já, tornou-se o único clube do mundo a transferir dois jogadores acima dos 120 milhões de euros (primeiro João Félix e, agora, Enzo Fernández).

É impressionante, apesar de em Portugal, muitas vezes, pela pequenez de alguma mentalidade, quase parecer banal um negócio, absolutamente fabuloso, de mais de 120 milhões de euros, como foi, esta semana, o caso da transferência de Enzo para o Chelsea do bilionário norte-americano Todd Boehly, que investiu, recordo, quase 5 mil milhões de euros para comprar o clube que durante 19 anos foi dominado pelo dinheiro do russo Roman Abramovich.

Ser, hoje, o único clube mundial (desculpe-me, o leitor, a expressão) com duas vendas de jogadores acima dos 120 milhões de euros é qualquer coisa, quase, de incompreensível, mas evidentemente muito assinalável e obrigatoriamente reconhecível como algo talvez só possível num clube cujo posicionamento da marca a nível global tem o impacto que a marca Benfica parece ter.

Pode, por outro lado, não se concordar com o estilo, a linha ou filosofia e com a forma de olhar para o fenómeno desportivo e para a atmosfera de um clube como o Benfica, do presidente Rui Costa. Mas será sempre muito difícil, creio, não ver no presidente encarnado alguém que procura defender intransigentemente os superiores interesses desportivos do clube - sendo sempre discutíveis, naturalmente, decisões ou escolhas -, e, ao mesmo tempo, tenta evitar correr o risco de se ver criticado por qualquer desequilíbrio financeiro.

A questionar-se, no caso do negócio-Enzo, o posicionamento do presidente do clube, talvez só mesmo, porventura, na decisão de querer esticar demasiado (ou não) a corda sobre a possibilidade de fazer um dos melhores negócios da história do futebol, a troco do desejo de manter, a todo o custo, Enzo no plantel. Pode questionar-se, claro. Julgo mesmo que no atual mundo do futebol, sobretudo neste industrializado e economicista mundo do futebol, é difícil não pensar que o comboio que passa hoje, talvez não volte a passar amanhã e, nesse sentido, aconselha o bom senso das inevitáveis regras de mercado que não se guarde para amanhã o que se pode fazer hoje.

O que já não é tão fácil de pôr em causa é a paixão com que o presidente do Benfica terá procurado convencer Enzo Fernández a continuar na Luz. Diz-se que Rui Costa abdicaria, nesse caso, de muito dinheiro, para aceitar que se transferisse já para o Chelsea, não perdesse um tostão que fosse do seu novo contrato, e continuasse, por empréstimo, a jogar na Luz. Pelos vistos, Benfica e Chelsea concordaram com isso. Todos, menos Enzo. Num homem, com todas as qualidades e defeitos, que vive o Benfica, como parece viver Rui Costa, com essa espécie de paixão familiar, não é difícil imaginar, pois, o que terão sido as últimas 48 horas de janeiro.
 

M UITOS serão os jogadores que recebem mais, muito mais, nalguns casos, do que dão aos clubes; raros são os que dão tanto como recebem; e, no caso do Benfica, só um terá dado realmente muito mais do que recebeu, e talvez por isso mereça tanto a estátua que tem no Estádio da Luz. Esta acertada visão, creio que do benfiquista Ricardo Araújo Pereira, resume bem o que é, cada vez mais (e não foi sempre assim?!...) o universo do futebol, onde a maioria procura defender interesses exclusivamente próprios, e muito poucos defendem interesses verdadeiramente coletivos. Peca, porém, por defeito, ainda assim, porque o futebol, quando conheceu outros tempos, nesses outros tempos não era ainda tão dominado pelo dinheiro, simplesmente porque o jogador de futebol não era então livre de decidir para onde queria ir jogar. Se noutros tempos os tempos fossem, nesse sentido, como são hoje, quantos Eusébios, quantos Colunas, quantos José Augustos e companhia teriam permanecido tanto tempo em Portugal e, no caso concreto, no Benfica? Talvez nenhum. Arrisco mesmo: seguramente nenhum. É por isso que não faz qualquer sentido falar-se em amor à camisola (e muito menos hoje) quando todos, mas todos, em qualquer circunstância, têm o legítimo direito de lutar por melhor, e mais rica, qualidade de vida, mesmo quando se trata, em muitos casos, de acrescentar milhões… a milhões.

O que, porventura, no caso, agora, de Enzo Fernández, pode ter caído realmente mal ao presidente do Benfica (daí podermos presumir que, a dada altura, Enzo terá passado das marcas) só pode ter sido a enérgica, talvez inesperada, no mínimo indelicada, grosseira e muito cruel forma como o jogador afirmou a sua indisponibilidade para jogar um minuto que fosse mais com a camisola do Benfica. De resto, o muito jovem Enzo só fez o que faz a larga maioria dos profissionais do futebol sempre que vive a mesma circunstância. Pode ser ingrato para os adeptos que sempre seguem ídolos e paixões, mas não pode nem deve servir como arma de arremesso por parte dos dirigentes.

O plantel do Benfica ficou mais fraco? Claro que ficou mais fraco, não faria qualquer sentido negá-lo, e muito menos depois de se reconhecer a capacidade e a qualidade do futebolista Enzo Fernández, e o valor do que ele acrescentou na equipa do Benfica desde que por cá passou a jogar. Mas esse é sempre o risco que correm todos os clubes, e todas equipas de todos os clubes dos países mais pobres, que contratam jogadores sabendo que correm, permanentemente, o risco de ter de os vender, e estão condenados a tentar comprar bem para tentar vender melhor, e mesmo, muito melhor, que foi o que o Benfica (também por força da sua marca e do impacto mundial da sua marca) voltou a conseguir fazer, mesmo sabendo-se que terá feito tudo para evitar fazê-lo, por nunca ter querido prescindir do que se viu, por fim, obrigado a perder. É o mundo do futebol no seu pior se o compararmos ao jogo, que é, ainda, o seu melhor.

PS: A entrevista que Rui Costa concedeu ontem, na BTV, e o discurso muito transparente que voltou a adotar podem ser vistos pelo lado do excesso de exposição pública do clube. Mas também podem (e parece-me que devem)  ser olhados pela ‘alma’ de quem manifesta (mesmo de modo, por vezes, menos perfeito) forte intenção de explicar e alimentar a ‘chama’ encarnada que há muito parecia ‘adormecida’, distante e fechada aos benfiquistas, muito pouco habituados a ver e sentir a vida do clube partilhada desta forma.