A moral

OPINIÃO17.02.202309:30

Imaginava lá eu ver o Bernardo Silva a lateral-esquerdo no Manchester City...

Q UANDO vi, ainda no recente Aston Villa-Manchester City (último domingo) e, já a meio da semana, também no Arsenal-Manchester City, ambos os jogos da Premier League, o português Bernardo Silva tantas vezes a ser lateral-esquerdo da equipa de Pep Guardiola, não pude deixar de me lembrar de Jorge Jesus e do que ele teve de suportar e de ouvir durante anos por ter colocado um dia Bernardo Silva a lateral-esquerdo num treino, imagine-se, quando Bernardo Silva era ainda, e só, um miúdo a dar os primeiros passos no futebol profissional e não o fantástico e consagrado jogador que é hoje, creio, sem qualquer exagero, como um dos grandes médios do futebol atual.

Pois o ‘mestre’ Pep Guardiola, justamente tão venerado como um dos grandes treinadores da história, depois de ter libertado o lateral-esquerdo Zinchenko (hoje precisamente no Arsenal) e de ter deixado partir, com bastante surpresa, outro português, o magnífico João Cancelo, para o Bayern, pede agora ao bom do Bernardo Silva que seja lateral-esquerdo, às vezes que feche até como se fosse um central (vejam bem o Aston Villa-City) e que faça ainda o que faz melhor, a médio, mais por dentro, ou mais pelos flancos, sempre que a equipa ganha a bola.

Que Bernardo Silva faz tudo isso bem feito, como fez nestes dois jogos (com duas vitórias do City pelo mesmo resultado, 3-1), tem Pep Guardiola toda a razão e não deixará certamente Jorge Jesus de lhe agradecer, porque a partir de agora talvez se deixe, finalmente, de azucrinar a cabeça do treinador português (não tenho memória, volto a sublinhá-lo, de ver em Portugal um treinador tão denegrido como se viu denegrido Jesus ao regressar ao Benfica), por ter tido a desfaçatez de pedir, então, ao garoto Silva que fizesse uma perninha a lateral-esquerdo para completar o xadrez de um treino, como se tivesse sido essa a causa para Bernardo trocar o Benfica pelo então milionário Mónaco…

Talvez, quem sabe?, o que também não é de excluir, já naquele tempo Jorge Jesus tenha visto no jovem Bernardo potencial para vir a ser várias coisas num jogo de futebol, como tanto elogia, agora, Pep Guardiola, reconhecendo o treinador espanhol (ou devo dizer catalão?) ter Bernardo Silva «algo de especial na sua personalidade e no seu caráter.»

«… [Bernardo] começou a lateral-esquerdo, depois foi para o lado direito, para extremo, e isso mostra como é bom jogador e como sabe o que fazer em cada posição», disse Pep Guardiola, salvo, evidentemente, pelas duas vitórias sobre Villa e Arsenal e por não estar, propriamente, sujeito à demagogia de um certo estilo de crítica tão em voga neste nosso pequenino, mas ruidoso país, onde a mesma decisão é vista, frequentemente, como sendo, nalguns treinadores, inexplicável invenção, mas noutros, elogiosa criatividade.

S OU capaz de imaginar, aliás, o que teria sido, com algum outro treinador, porventura, menos benquisto, a análise às decisões do treinador do Sporting, o jovem Rúben Amorim, de fazer defrontar o FC Porto, num jogo absolutamente decisivo, um adoentado Trincão (substituindo-o à meia hora), já para não falar de pôr Esgaio e tirar Esgaio em apenas 15 minutos, sob alegado argumento de se ter visto, entretanto, a perder.

Já ontem, parecendo querer remendar a mão, deu, sem especial proveito, uma hora de jogo a Esgaio, num jogo de incontornável insucesso para os leões, porque empatar em Lisboa com os dinamarqueses do Midjtylland não pode satisfazer nem o mais compreensivo dos adeptos do Sporting, incapaz de alegrar meia casa em Alvalade. A descrença acumula-se. Ontem, quase pior ainda do que o resultado, foi ver-se a equipa fazer apenas dois remates enquadrados com a baliza adversária, imagine-se, e lá lhe valeu aquele de Coates, que deu, por fim, o golo que repôs uma igualdade que, do mal o menos, não deixa de ser resultado perfeitamente ultrapassável na Dinamarca, apesar de o leão, cada vez mais inquieto, dar sinais de forte perturbação e desconfiança e o jovem treinador sinais de instabilidade. Quando, no exterior, aumenta o ruído, poucas equipas são capazes de se manter seguras. Este Sporting começa, também, a ser bom exemplo disso.

A O contrário, a equipa do Benfica dá a ideia de respirar tal confiança que se tem permitido absorver bem o impacto de um resultado negativo como o registado em Braga, ou a saída de um jogador de tão grande influência e indiscutível qualidade como era Enzo, ou, ainda, a frágil capacidade concretizadora que a equipa vai revelando em muitos jogos (demasiados jogos, aliás, para um candidato a títulos), como mais uma vez ficou amplamente demonstrado na noite europeia de sucesso (meio sucesso na eliminatória) que as águias viveram, esta semana, na bela cidade de Bruges. Não é a primeira vez, e certamente não terá sido a última, que a equipa de Roger Schmidt revela tão acentuado desequilíbrio entre o jogo ofensivo que cria e o ataque que (não) é capaz de transformar em golo, o que, apesar de toda a confiança, não pode deixar de preocupar responsáveis e jogadores. 

Está o Benfica com pé e meio nos quartos de final da Champions? Pois parece, evidentemente, que sim, ainda que, à boa moda antiga, cautelas e caldos de galinha nunca tenham feito mal a ninguém, e pelo sim, pelo não, foi este mesmo Club Brugge que, já esta época, foi capaz de surpreender o campeão nacional português como surpreendeu, com aquele impensável 4-0 com que venceu no Estádio do Dragão, ainda que tenha sido, também, este mesmo Club Brugge a ver-se, depois, golpeado pelo FC Porto, em casa, pelo mesmo severo resultado. Deixa, em todo o caso, a águia de Schmidt muita água na boca dos adeptos, que não deixarão de fazer da Luz um ‘inferno’, no jogo da segunda mão.

Quanto ao sonho maior com que se manifesta o presidente encarnado, pareceria, isso sim, inexplicável é que não fosse o líder da Luz o primeiro a sonhar e o primeiro a motivar todos aqueles que quer que o sigam. Hoje, no futebol, talvez mais do que nunca, estará sempre mais perto de vencer quem mais vontade mostrar e mais fome sentir, como tão bem tem procurado explicar aos brasileiros esse ‘guerreiro’ vencedor que tem sido Abel Ferreira.

D EPOIS de ter levado, por duas vezes, cinco em Alvalade, e de ter ganho, também por duas vezes, ao Benfica, a primeira com todo o mérito, a segunda graças, também, a inequívoco e grosseiro erro da equipa de arbitragem, no campo e no vídeo, o Sporting de Braga provou ontem do ‘veneno’ que atingiu a águia na Taça (teve, também, de jogar com dez, embora menos tempo), e foi devastadoramente goleado em casa pela Fiorentina, numa noite desastrada (mas com boa arbitragem, ao que parece, no campo e no VAR), que deve atirar a equipa portuguesa para fora da Liga Conferência, porque não se vê, com franqueza, como poderão Artur Jorge e seus rapazes recuperar de tão pesado resultado.  No futebol, com ferro se mata, com ferro se morre, porque o jogo tem, felizmente, muita coisa que ninguém consegue  controlar. 

O S arquivos e as memórias têm destas coisas, mais ou menos surpreendentes, consoante a circunstância, como a do verdadeiro ‘tesourinho’ que é um trecho de uma entrevista dada há anos pelo antigo internacional português Tavares, que jogou, muito pouco, no FC Porto e, maioritariamente, no Boavista, e vestiu ainda, também apenas por uma época, a camisola do Benfica. 

Nessa entrevista de há anos, recordava Tavares as duas Supertaças Cândido de Oliveira ganhas ao FC Porto como dois momentos altos do seu percurso no Bessa, a primeira em 1993, e a segunda em 1997, precisamente a que contemplou a história mais curiosa. Contou, então, Tavares: «(…) Já com o Mário Reis como treinador do Boavista, ganhámos em casa 2-0 e perdemos 0-1 nas Antas, mas, quando estávamos a festejar, apagaram as luzes e ligaram a rega. Acabámos por receber a taça no balneário.»

Diz-se que o tempo tudo cura. Não creio, mas admito que cure alguma coisa. O que certamente o tempo não cura são as ‘feridas’ abertas na história, porque a história não se apaga, pode, apenas, e eventualmente, ser esquecida até que alguém se lembre de a recordar. Mais de uma década depois, na Luz, assumiram também os responsáveis do Benfica - e disso já todos nos lembramos - a lamentável e nada edificante decisão de apagar a luz e ligar igualmente a rega, no momento em que a equipa do FC Porto celebrava, naturalmente em festa, o título de 2011.

O que os responsáveis portistas fizeram 14 anos antes nunca poderia ter servido (se é que serviu…) de justificação para o que foi feito pelos responsáveis benfiquistas.

Mas serve, lá isso, inquestionavelmente, serve, para confirmarmos como a hipocrisia tem comandado tanto esta nossa atribulada vida neste tão pouco espirituoso futebol português, onde, há décadas, não tem faltado, na verdade, quem finja virtudes e exija a moral que não tem.