A mãe do árbitro

OPINIÃO03.11.202205:35

Às vezes é impossível pensar que o que se viu em Quito é (só) coisa de fanático no manicómio

DA história já aqui falei -contada por Eduardo Galeano em Futebol: Sol e Sombra: que, ao regressar ao Equador após longo exílio político, Jorge Enrique Adoum (quando ainda não tinha escrito Entre Marx y Una Mujer Desnuda) correu, empolgado, a um dos seus rituais em Quito: ver o Aucas. Andava-se pelos anos 60 e, ao entrar no estádio, viu-o cheio como odre, a fervilhar. Num ápice, cobriu-se de silêncio. Com os espetadores de pé (e de caras a amarrarem-se) foi-se ouvindo, pelo altifalante, a voz (por vezes entaramelada pela emoção) de um dirigente, elogiando o árbitro por estar ali, para apitar o desafio
- cumprindo o seu dever na mais triste das circunstâncias.
Com ele acabrunhado no centro do terreno percebeu-se-lhe lágrima furtiva no rosto. Quando, depois, o dirigente se calou, a multidão bateu palmas - e Adoum murmurou (de si para si):
- Como as coisas mudaram. Antes, as pessoas só queriam saber dos árbitros para lhes chamar filhos da put#!
Ao quarto de hora, golo do Aucas pôs o estádio em ebulição, a euforia transformou-se em ira ao ver-se que o árbitro o anulou - e da turba soltou-se o uivo:
- Órfão de uma put#... órfão de uma put#...
No fundo, era a expressão daquilo que o próprio Galeano quis mostrar:  
- No futebol, o fanático é o adepto no manicómio.
Mas não, às vezes não é assim -  nem sempre é assim. E porque nem sempre é assim - é que eu (que acho que o trabalho do árbitro é o mais difícil que o futebol tem...) às vezes percebo que é impossível que, num campo de futebol, um coração (por mais frio que seja) não passe, num piparote, da dor partilhada (numa metáfora qualquer) à ira assoprada (por um desatino qualquer). Basta que um esloveno chamado Slavko Vincic e um espanhol chamado Juan Martinez Munuera (que consta que estava no VAR - e o consta aqui tem o cru significado  que se imagina…) tenham feito o que fizeram no Sporting-Eintracht Frankfurt…