A identidade!

OPINIÃO25.09.202004:00

A identidade das grandes equipas de futebol, ou melhor, das equipas grandes, define-se pela forma como assumem o jogo. Não significa que sejam sempre melhores, às vezes não são, e portanto não ganham sempre, não podem ganhar sempre, e toda a gente sabe que nenhuma equipa, por mais forte que seja, consegue ganhar sempre.

Vejamos o caso do FC Porto, que se apresentou neste arranque de campeonato a mostrar-se forte defensor do título conquistado há dois meses, tendo, para já, conseguido, aliás, o que não tinha sido capaz de conseguir no último campeonato, que foi ganhar ao Braga.

O caso do FC Porto, dizia, define o paradigma de uma equipa de futebol grande, por menos grande equipa que seja ou por mais fraca que, circunstancialmente, possa estar. E porquê? Porque o FC Porto tem aquela identidade de assumir sempre o jogo, sempre, seja onde for e frente a quem for. Não é sempre a equipa mais forte, pois claro que não é, e sabe que há dias em que os adversários são melhores, ou mais fortes, ou mais felizes, ou mais eficazes. Mas com o FC Porto, e, agora, em especial com este FC Porto do bravo, intenso e apaixonado Sérgio Conceição, o que os adversários raramente mostram é mais atitude, mais vontade de assumir o jogo e mais disponibilidade para o dominar.

A atitude, a forma como se assume o jogo, o espírito de conquista e a disponibilidade física e mental é o que define as equipas grandes, além, evidentemente, da qualidade individual, que marcará a principal de todas as diferenças, e da solidez tática, que é, depois, o que dá estrutura e harmonia à equipa e o modo como se posiciona em campo e, eventualmente, transforma uma equipa grande numa grande equipa!

Mas sem atitude, sem caráter, coragem, confiança, motivação para assumir o jogo, para procurar mandar no jogo, para fazer com que aconteça em vez de esperar acontecer, sem isso, atrevo-me a dizer que dificilmente haverá qualidade individual que leve uma equipa grande a ter sucesso mesmo que numa grande equipa a presença de dois ou três grandes talentos possa, por fim, fazer em muitos jogos real diferença.

Mas o talento decidirá corrida de 100 metros, nunca uma maratona; pode determinar um jogo, mas dificilmente decidirá longa competição. Não por acaso se diz que podem ser os ataques a ganhar jogos, mas são as defesas que vencem os campeonatos!... Parece-me que sim, e nesse sentido, não se devendo construir a casa pelo telhado, ninguém pode esperar sucesso se não construir uma equipa de trás para a frente e com a ideia de que precisa de forte estrutura coletiva para poder potenciar e explorar o talento.

VEM isto a propósito, também, da estreia do Benfica nesta tão particular e peculiar Liga da Covid-19, a doença que mudou isto tudo e continua, por enquanto, a impedir que a alma do público possa voltar ao futebol.

Estreou-se o Benfica em Famalicão depois do pesado insucesso europeu na Grécia, e a verdade é que se estreou na Liga a fazer o que na verdade há muito não se via o Benfica fazer enquanto modelo de equipa grande, isto é, com a identidade que verdadeiramente define as equipas grandes mesmo antes de serem grandes equipas, precisamente porque a isso estão obrigadas pela responsabilidade que lhes está destinada por serem equipas grandes.

Gosto de recordar, a propósito do Benfica, certa declaração do ex-capitão encarnado Luisão (que boa notícia ter recuperado do que quer que seja que lhe aconteceu e já ter tido alta hospitalar!...) porque os jogadores - alguns mais até, por vezes, do que os treinadores - sentem como ninguém o bater do coração de uma equipa, a respiração e a temperatura do sangue que lhe vai correndo nas veias…

Disse Luisão que nos últimos anos - e referia-se ao tempo após o ciclo de Jorge Jesus -, apesar de ter continuado a ganhar, o Benfica «foi perdendo cada vez mais identidade».

Creio que Luisão será certamente compreendido por todos os que historicamente se habituaram - como nos seis anos de Jesus na Luz - a ver o Benfica defender exatamente a identidade a que se refere Luisão, a identidade que define, sublinho, as equipas grandes mesmo que possam, momentaneamente, não ser assim tão grandes equipas como clube e adeptos desejariam.
Volto ao FC Porto de Sérgio Conceição, e, por ser justo, a outros Portos, que mesmo quando estiveram mais fracos na qualidade individual ou nas soluções do plantel, raramente deram mostras de perder a identidade, aquela identidade que fez e faz o FC Porto assumir-se sempre como equipa grande, de ter sempre disponibilidade física e mental para assumir e mandar no jogo sempre que o adversário é, em teoria, de valor inferior, ou a força para o discutir com exemplar determinação, sempre que o adversário é, em teoria, de valor superior, ou se mostra, circunstancialmente, mais forte.
Simplificando a coisa: equipas como as do FC Porto ou Benfica, para citar as que há mais anos dividem a luta pelos títulos de campeão nacional e dividem os próprios títulos de campeão nacional, não podem nunca abdicar daquela identidade, de se assumirem, seja qual for a circunstância, como equipas grandes, e de se mostrarem sempre disponíveis para assumir o jogo e procurar mandar nele.
Podem não jogar melhor que o adversário, podem ser até surpreendidos, ser menos eficazes, cometer mais erros e acabar por perder. Faz parte do futebol. Mas o que não é natural é vermos FC Porto ou Benfica deixarem o jogo correr como se tivessem apenas de esperar para ver o que sucede. Não é isso que fazem as equipas grandes e muito menos as grandes equipas!

A estreia do Benfica em Famalicão foi claramente a estreia de quem vem para mandar, para se impor, para assumir. Nada que não pudéssemos ou devêssemos esperar de uma equipa de Jorge Jesus.

O que sucedeu na Grécia - independentemente da dor que aquele soco terá provocado em responsáveis, jogadores e adeptos - foi um daqueles acidentes em que o futebol também é fértil, e resultado de um conjunto de circunstâncias e erros que atiraram o novo Benfica de Jorge Jesus para uma espécie de buraco negro dominado pela maldita lei de Murphy, segundo a qual «qualquer coisa que possa correr mal, correrá ainda pior no pior momento possível».

Na verdade, o que a viagem do Benfica à Grécia tinha para correr mal, acabou por correr ainda pior, com aquele requinte de malvadez de ter sido o ex-águia Zivkovic a ditar praticamente o fim da linha para os encarnados. E o momento era o que era. Era irreversível. Era fatal. Era definitivo. E, portanto, o pior momento possível para que algo ocorresse de mal como, infelizmente para os benfiquistas, acabou por correr.

EM todo o caso, não parece nada que esse acidente de grande impacto na Champions possa condicionar o enorme e estimulante desafio que Jesus e as águias têm pela frente na reconstrução de um Benfica de novo, e verdadeiramente, com a identidade de equipa grande, que assuma, que procure mandar, que corra os riscos e não se acomode, não se resigne e não fique, sobretudo, à espera para ver o que o jogo dá. Isso não é próprio nem é da natureza de uma equipa grande.

Se é verdade que o FC Porto de Sérgio Conceição, mesmo com mais ou menos dinheiro, mais ou menos reforços, mais ou menos brilhantismo, melhor ou pior futebol, sempre se esforçou, e muito, por não perder essa identidade, a verdade também é que o Benfica, como disse Luisão, foi, visivelmente, perdendo essa identidade ao longo dos últimos anos - oscilando demasiado entre o bom e o muito mau… -, mesmo que afirmá-lo possa parecer injustificado perante os títulos de campeão que o Benfica de Rui Vitória (dois) e o de Bruno Lage (um) souberam, naturalmente com os seus méritos, deixar, apesar de tudo, para as vitrines do museu da Luz.

Mas o Benfica que fomos vendo nos últimos tempos, mesmo com os méritos quando venceu, foi-se mostrando progressivamente mais frágil na atitude, nessa identidade de assumir os destinos de equipa grande na justa medida das suas responsabilidades, foi-se mostrando uma equipa cada vez mais vulnerável e cada vez mais exposta ao jogo e ao que o jogo lhe ditava, e agora, pelo contrário, já deu a ideia, e essa é a expectativa, de se tornar de novo equipa grande, no sentido, volto a repetir, de mandar no jogo, de o agarrar em vez de se ver agarrado, impondo-se e, respeitando naturalmente o valor do adversário, não deixando que seja o jogo a impor-se à identidade própria e à atitude que sempre deve ter uma equipa grande, seja ou não já uma grande equipa, como creio que todos concordarão que o Benfica ainda não é, embora deixe claramente a ideia de poder vir a sê-lo a muito curto prazo, assim Jorge Jesus consiga arrumar rapidamente a casa e dar ao plantel a estrutura final para, então, atacar realmente o campeonato nacional (o principal dos objetivos, concordo, evidentemente) e a Liga Europa, prova na qual creio que, ou muito me enganarei, ou os adeptos encarnados poderão, mais uma vez, de forma justificada, depositar grandes esperanças. É um palpite!