OPINIÃO A Coluna do Gibelé
Na crónica de hoje do Livro de Desassessego: do bairro do Kassequel do Buraco ao estrelato no CAN, a aventura do palanca Gilberto, o novo amuleto da seleção angolana e a forma como África nos obriga a reorganizar a lista de prioridades.
«O Kassequel é um bom bairro para se viver… A vizinhança é que não é grande coisa. Muita gente faz coisas erradas». É desta forma, num tom quase pueril, que um jovem angolano se refere ao bairro de Luanda onde naceu e cresceu. No fundo, numa extrapolação mais filosófica do que o autor equacionou, há lugares que podem ser felizes apesar das pessoas. Mas este jovem não seria feliz sem um lugar e o seu lugar é o Kassequel. Não o disse, mas talvez o jovem acredite que nenhum lugar é sentença, nenhum bairro é grilheta. A pobreza não é desculpa para más decisões.
Deve ter sido nisso que também acreditou Gilberto quando fez da Rua 54 do Kassequel do Buraco o primeiro estádio, da terra batida o primeiro relvado. Olhando o Aeroporto 4 de Fevereiro, ali ao lado, como um sinal que a qualquer altura poderia também ele levantar voo. E levantou. Fez-se à pista no Atlético Sport Aviação (ASA), ganhou velocidade no Libolo e levantou voo no Petro de Luanda e seleção de Angola. O filho de Gilda e Bebeto, de cuja fusão de nomes surgiu Gilberto, tem agora 22 anos. Melhor jogador do Girabola de 2022/23, o extremo é o jogador do momento no Campeonato Africano das Nações que está a decorrer na Costa do Marfim… Mas não só pelo que joga.
Ao ritmo de «Ay Trabalha»
Não sei como ficará o Angola-Nigéria desta sexta-feira, dos quartos de final do CAN, ao fim de 90 minutos de jogo. Mas sei o que vai acontecer 90 minutos antes do pontapé de saída por ser já um ritual que corre mundo. O autocarro que transporta os Palancas Negras vai estacionar no parque do Estádio Félix Houphouët-Boigny, em Abidjan, e Gilberto vai comandar o grupo até ao balneário, de coluna de som ao ombro, a debitar elevados decibéis de kuduro. Marca o ritmo da dança e todos o acompanham. E todos param para ver Angola passar. Talvez escolha para hoje o tema Ay Trabalha, dos Ingomblock, banda sensação em Angola.
«Txé ingo ingo ingo ingo ingo
Txé black black back back black
(Jess jess, jess)
Sempre que ouvir Promaica levanta»
«Mãe, o teu filho vai comprar casa digna para a senhora»
Os Palancas estão a fazer o melhor Campeonato Africano das Nações de sempre e para os angolanos restam poucas dúvidas sobre o que está a dar sorte: a coluna de Gilberto. Melhor dizendo, a «coluna do Gibelé», como é carinhosamente tratado. E a loucura é tal, que o preço da marca de colunas usadas por Gilberto dispararam…. Num dos mercados de Luanda era possível comprar modelos mais pequenos por 17 mil Kwanzas (19 euros); agora os vendedores já cobram… 85 mil (93 euros). Os artistas começam a escrever canções sobre a Coluna do Gibelé, aquela que, acreditam, marcará o ritmo de Angola até à conquista do troféu. E os tatuadores não têm mãos a medir para tatuarem a Coluna do Gibelé em muita gente.
Gilberto, cujo ídolo é Rafael Leão, está grato. Não esquece de onde veio. E escreveu-o num post do Facebook: «Deus tem ouvido as nossas orações. Mãe, o teu filho vai comprar uma casa digna para a senhora com o dinheiro do meu suor».
Não sabemos se Angola vai vencer o CAN. Para já, há que vencer a Nigéria de José Peseiro, uma das crónicas candidatas ao título. Por razões afetivas, gostava que Angola defrontasse Cabo Verde na meia final, tendo os Tubarões Azuis de vencer, amanhã, a nem sempre favorita, mas sempre competente África do Sul. Estaria garantida uma final a falar português, no mais lusófono CAN de sempre. Pela primeira vez quatro PALOP no CAN (Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau e Moçambique) e três selecionadores portugueses (Pedro Gonçalves, Angola; Rui Vitória, Egito; José Peseiro, Nigéria.)
Que José Peseiro não se zangue comigo, mas hoje vou unir a voz aos que, de Cabinda ao Cunene, vão entoar «Um só Povo, uma Só Nação». Mas antes, quero ouvir a Coluna do Gibelé:
«Sabalar cuia bué, sabalar
I sabalar, ay balar txé
Trabalhar cuia bué trabalhar
I trabalhar, ay trabalha txé»
«Malembe, malembe»
A cobertura, para A BOLA, dos CAN de 2010, em Angola, e 2013, na África do Sul, marcou não só a minha carreira de jornalista como a minha vida. O futebol é festa, o drible é festejado como golo, a dança marca o ritmo. Ou me dava por inteiro, como papel em branco pronto para tudo assimilar e experimentar, ou passaria ao lado de tudo em permanente desajuste.
Mas tenho de confessar. O meu primeiro contacto com África, em 2005, não foi pacífico. Porque África não é só um local. É um estado de espírito. São desafios que podem ser exigentes para a compreensão de um europeu. Todos os sentidos são postos à prova. Felizmente, entendi que merecia uma segunda oportunidade para me apaixonar por África. E ao dar-me essa oportunidade, passei do estranhar para o entranhar à velocidade de um fósforo.
Nas ruas de Luanda ou de Maputo, aprendi que os europeus têm o relógio, mas África é que é dona do tempo. Malembe, malembe, disseram-me algumas vezes em Luanda. Ou seja, clama, calma, sem pressa. Mais do que uma repreensão, um conselho que me davam. Há coisas que se fazem devagar. Há coisas que precisam de ser saboreadas. Porquê querer ser rei neste jogo de xadrez da vida se, no final do jogo, rei e peão são arrumados na mesma caixa?
Nas ruas de Luanda ou Maputo, percebi que a distância não se mede em quilómetros. O longe é sempre perto.
Nas ruas de Luanda ou Maputo, testemunhei que há duas verdades sagradas em África: o respeito pelo mais velho e o valor da família. E aprendi com as zungueiras qual o verdadeiro sabor da fruta. Num pequeno musseque da Ilha de Luanda comi um Calulu que ainda hoje me leva às lágrimas pela saudade. E no bairro 1.º de Maio de Maputo uma matapa que explodiu em sabores e se entranhou.
Em Luanda e em Maputo percebo que sentia falta de sentir falta. África é um constante desafio à reorganização da lista de prioridades. Em Angola bebi da água do Bengo e cumpriu-se a profecia de ficar para sempre ligado ao país.
Do bairro Rocha Pinto, em Luanda, guardo a imagem de uma criança a tocar-me no braço. Pensei primeiro que queria que lhe desse alguns cuanzas. Depois percebi que apenas queria, pela primeira vez, tocar na pele de um branco. Porque a maioria dos brancos não se atrevia a entrar no Rocha Pinto. Sorri. Acreditou em mim quando lhe disse que a pele dele era melhor que a minha. Espero que também tenha acreditado que a raça mais importante é a raça humana.
I trabalhou, ay trabalhou (txé)
(Tsikitsi tsikitsi tsikitsi tsikitsi tsikiwa)