«Afinal, filho de doutor pode dar jogador...»
Bernardo Silva, figura de 2023 para A BOLA (Foto: Adrian O'Toole)

«Afinal, filho de doutor pode dar jogador...»

OPINIÃO04.01.202416:20

A arte dos humoristas dizerem coisas sensatas revestidas de loucura e a razão de eu mudar o Dia das Mentiras de 1 de abril para 31 de dezembro - «Livro do desassossego», opinião de Jorge Pessoa e Silva

Se houve escolha de A BOLA para Figura do Ano que me deixou particularmente orgulhoso foi a de 2023: Bernardo Silva. Num sentido mais poético, nem foi uma escolha, foi uma devolução de um prémio ao legítimo dono. Esteve na nossa posse durante 12 meses, regressou no final do ano a casa. Os melhores nunca reivindicam nada. Não precisam. Pensam, decidem e agem de modo a que um troféu nunca seja uma prenda, mas essa tal devolução.

Bernardo Silva chamou a minha atenção pela primeira vez em 2014. Tudo começa por um comentário de Jorge Jesus, então treinador do Benfica, quando questionado se haveria na formação quem pudesse ser sucessor de Matic, jogador que Jesus considerava o melhor médio defensivo do Mundo e que as águias acabavam de vender ao Chelsea. «Só nascendo 10 vezes», atirou Jesus. Bernardo Silva, jogador da formação encarnada, replicou nas redes sociais: «A minha mãe já me disse que se for preciso me mata e ressuscita mais umas quantas vezes». Para muitos, um ato de irresponsabilidade, um confronto gratuito e prejudicial, para o próprio Bernardo, com Jorge Jesus. Mas para mim, o dia em que Berrnardo Silva me cativou. 

Jorge Jesus e Bernardo Silva no Benfica(Foto: ALEXANDRE PONA/ASF)

Atenção: não estou a tomar partido sobre quem tinha razão. Mais do que a tese defendida por Bernardo Silva, o que me cativou foram os traços de personalidade que o próprio revelava. Admiro quem não se escuda nos lugares comuns e no politicamente correto; respeito quem emite opinião sabendo que isso o pode prejudicar; e, acima de tudo, rendo-me a quem tem sentido de humor, uma manifestação superior de inteligência. O escritor e diplomata italiano Carlos Dossi (1849-1910) escreveu que «os humoristas dizem coisas sensatas revestidas de loucura». E ao longo dos anos, nas redes sociais ou em entrevistas, várias vezes Bernardo Silva disse coisas sensatas revestidas de loucura. De humor e inteligência. Sei que nem sempre lhe saiu bem, o humor é gelo fino, o preço do génio é o risco de quedas aparatosas. Pago... 

«Uma vez, na formação do Benfica, disseram-me que filho de doutor não dá jogador», conta Bernardo Silva. Na verdade, filho de um pai que trabalha numa empresa de segurança digital e de uma mãe professora de história de arte. E Bernardo, que um dia, acredito, irá concluir o curso de Estudos Europeus — talvez depois do de treinador — terá aliado o raciocínio mais analítico da profissão do pai com o artístico da profissão da mãe. E isso nota-se na forma como joga. Na forma como percebe o jogo, como o executa com a precisão de um matemático, aliado a um sentido estético de um pintor, num constante fascínio e prazer que retira do que faz. 

Bernardo Silva não toca de ouvido

Se fosse músico, Bernardo Silva não tocava de ouvido… Saberia ler e interpretar as pautas, perceber os andamentos das peças musicais e, devido a esse domínio, ousaria depois improvisar, num velho conceito de que o melhor improviso é aquele que é preparado. Não é por acaso que Bernardo Silva é o músico que mais vezes Pep Guardiola fez subir ao palco em toda a carreira de maestro

Bernardo Silva com Guardiola após a final da Liga dos Campeões deste ano (Foto: IMAGO/ANP)

Há jogadores cujo prazer e validação se alimentam apenas das vitórias ou dos títulos. Para Bernardo, o processo é o prazer, o conhecimento é a validação, os títulos são apenas a consequência. E é esse domínio e conhecimento do jogo que o levou a atingir um estado de maturidade que o coloca imune a crises existenciais e necessidade de validação pelos outros. 

Bernardo Silva com a taça da Champions, um dos cinco troféus que conquistou em 2023 (Foto Imago/Revierfoto)

Saber que é dos melhores do Mundo, com a humildade e serenidade dos grandes, coloca Bernardo Silva, também, imune às verdades que se dizem nas costas, ao cinismo ou aos eufemismos. Um grito de Pep Guardiola não o incomoda. A sinceridade das verdades ditas e assumidas nos olhos é um valor inestimável para quem sabe que é bom no que faz. Estar rodeado dos melhores, trabalhar com quem é ainda melhor, nunca foi um risco para o sucesso e progressão de uma pessoa. Sós os inseguros se regozijam com os erros do outro; só os maus profissionais bajulam gratuitamente; só os bons se exasperam com a mediocridade, a bajulação, ou os eufemismos. 

É por tudo isto, e mais, que considero Bernardo Silva um dos homens mais inteligentes e bem resolvidos que conheci e um digno discípulo de Guardiola quando decidir, como o próprio admite, ser treinador. Afinal, caro Bernardo, filho de doutor pode dar jogador. 

Verdadeiro dia das mentiras

Se mandasse, trocava o Dia das Mentiras de 1 de abril para 31 de dezembro. Porque não há dia do ano em que se minta mais: «vou deixar de fumar; vou perder peso; vou começar a poupar; vou dar mais atenção à família; vou ajudar mais o próximo; etc…» Resultado: o dia 1 de janeiro transformou-se num cemitério de resoluções de fim de ano... No dia 31 de dezembro confrontamos aquilo que somos e tempos com aquilo que gostaríamos de ser e ter. Já o 1 de janeiro marca a fronteira entre a força de vontade e a… vontade de ter força.

Já dei por mim a ser provocador ao desejar aos outros, na passagem de ano, «que a vida seja justa contigo». Mas poucos entendem a provocação por interpretarem este voto como «que a vida te dê o que mais queres», quando o que eu estou a desejar mesmo é «que a vida te dê o que mereces». Porque conheço as minhas limitações e fragilidades, nunca desejo isso para mim, receberia sempre menos do que gostaria. 

Também nunca desejo a maldade de realizar todos os sonhos. A vida já nos ensinou que algumas das melhores coisas que nos aconteceram foi mesmo a não realização de um sonho que, percebemos mais tarde, ou iria dar em pesadelo ou nos impediria de embarcar num sonho ainda maior. Não tenho a veleidade de saber sempre o que é melhor para mim. Veleidade de querer prever, controlar e exigir. Só assim estarei mais disponível para aproveitar as oportunidades e as boas surpresas que a vida sempre reserva e mais protegido das agruras e deceções. No mais, é como canta Jorge Palma: «Reduz as necessidades se queres passar bem». 

Que 2024 nos inspire a todos a ser mesmo boas pessoas. É mais simples que sermos más pessoas, dá menos trabalho e é a maneira mais fácil de termos o que realmente precisamos e merecemos.