OPINIÃO «Fala, garoto...»
«Onde não se pode criticar, todos os elogios são suspeitos». Ayaan Hirsi Ali
Conheci Marinho Peres em julho de 1996. Ele treinador do Marítimo, eu jornalista de A BOLA, enviado ao estágio de pré-temporada dos insulares em Balsta, a 50 quilómetros de Estocolmo, capital da Suécia. Percebi no primeiro dia que era impossível não gostar de Marinho Peres: carismático, enérgico, sorridente, com grande sentido de humor. «Fala aí, garoto», dizia sempre quando interpelado pelos jornalistas.
No final das três semanas de estágio, o Marítimo realizou um jogo de treino com uma modesta equipa grega, que tinha apenas uma semana de trabalho. Os insulares foram goleados por 4-1, num jogo em que revelaram deficiente trabalho físico e em que Marinho Peres tomou algumas opções que me surpreenderam por me parecerem ilógicas e que não resultaram. «Os equívocos de Marinho Peres», escrevi em A BOLA. Uma crónica a elencar tudo o que entendia estar mal e a necessitar de correção urgente por parte do treinador.
Os gritos do presidente e a conversa que não mais esquecerei
No dia seguinte, confesso, temi a reação de Marinho Peres. Mas quando nos encontrámos, já depois do treino, ele sorriu e cumprimentou-me como nos outros dias. Mas não tive tempo para respirar de alívio, já que a uns 20 metros de nós estava o então presidente do Marítimo – curiosamente também atual – Rui Fontes, com uma cópia da crónica na mão e aos gritos. «Os equívocos de Marinho Peres? Mas o que é que este jornalista percebe de futebol para criticar o nosso treinador? Como é que isto é possível?».
Vendo-me algo tenso, Marinho Peres colocou-me a mão no ombro.
- Jorge, tu és jornalista, és profissional e A BOLA paga-te para fazer o teu trabalho, certo?
- Certo, Marinho Peres.
- Escreveste o que entendeste que era justo, certo?
- Claro, Marinho Peres.
- Assinaste o artigo, está lá o teu nome, não te escondeste no anonimato, certo?
- Verdade, Marinho Peres.
- Então não tens motivo algum para ficar incomodado. Tu fazes o teu trabalho, eu faço o meu e já que nenhum de nós está neste momento a trabalhar, que tal irmos beber uma cerveja?
Foi neste momento que percebi a rara dimensão humana de Marinho Peres.
Elogio, esse corruptor
Ser solidário com quem nos faz elogios é fácil. O elogio tudo compra. É um poderoso afrodisíaco, em especial quando revestido de bajulação, porque se infiltra sorrateiro pelas portas escancaradas do ego e se alimenta do défice de autoestima. Difícil é ser solidário com o direito do outro a criticar publicamente as nossas decisões. Difícil é separar as águas, saber interpretar a crítica, perceber até da sua utilidade e manter com essa pessoa uma relação de saudável convivência. As convicções mais profundas revelam-se quando temos de ser juiz em causa própria. É por isso que é muito mais fácil, por exemplo, condenarmos energicamente os governos que apostam nas energias fósseis do que ir beber um café a 500 metros da porta de casa sem usar o automóvel. A escritora britânica Evelyn Beatrice Hall [1868-1956] foi mais longe, no livro Os Amigos de Voltaire: «Não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o último instante o teu direito de dizê-la».
Em quase 29 anos de jornalismo, sei por experiência feita que os agentes do futebol, genericamente falando, não lidam bem com a crítica. Ora vendo intentos persecutórios; ora confundido uma crítica dirigida a eles com um ataque à instituição que defendem. Públio Cornélio Tácito, historiador e senador romano do século I, haveria de resolver este tema de uma penada, repetindo que «quem se enfada pelas críticas, está a reconhecer que as merece.» Calma, senador, o assunto é mais complexo, até porque os reparos também devem ser feitos a quem critica. Criticar é uma arte exigente. Se a razão estivesse toda de um só lado, nenhuma discussão demorava mais do que cinco minutos.
É importante que fique claro a quem me lê e a quem é visado, que eu critico atos, decisões ou declarações. Não julgo pessoas. Quando critico tenho de justificar e sugerir alternativas. E aprendi na vida que o homem de sucesso sabe que termos alguém que nos aponte os erros é um bem de valor inestimável. O crítico é muito mais útil ao sucesso do que o bajulador. Até porque, como defende a somali Ayaan Hirsi Ali, ativista dos direitos das mulheres muçulmanas, «onde não se pode criticar, todos os elogios são suspeitos.»
«Está morto? Podemos elogiá-lo»
Sentido de humor foi coisa que também nunca faltou ao brasileiro Machado de Assis (1839-1908), um dos nomes maiores da literatura lusófona. No conto Empréstimo, referindo-se ao personagem principal, o tabelião Vaz Nunes, o narrador desabafa: «Está morto, podemos elogiá-lo à vontade…»
Há quem veja nos elogios aos mortos um exercício de hipocrisia. Eu sou mais benevolente. O problema é deixarmo-nos enrolar pelo frenesi da vida e permitir que a agitação dos dias marque o nosso ritmo e crie uma tal poeira que não vislumbramos o que realmente é importante na vida. É como a saúde: só a valorizamos quando a perdemos. Não arranjamos tempo para tratar dela, termos de arranjar tempo para ficar doentes.
Na noite em que Marinho Peres morreu, cheguei a casa e, já que nenhum de nós estava a trabalhar, abri duas garrafas de cerveja. Sentado com vista para a Serra de Sintra, que sempre me inspira, brindei à vida. «Fala, garoto».