A câmara corporativa do futebol!...

OPINIÃO02.07.202206:30

As forças que se digladiam na Federação Portuguesa de Futebol há muito tempo que não são favoráveis ao Sporting, bem pelo contrário

C ORRIA o ano de 1976, ou seja, mais de dois anos depois da revolução de Abril, quando se viviam ainda alguns desvarios, próprios de um povo que não sabia o que era viver em democracia, e que o 25 de Novembro não conseguiu debelar completamente. Era ainda um tempo em que se falava e reclamava por julgamentos populares e tudo era legislação e ensino fascista. Resultado de uma hepatite, de que me encontrava em recuperação, deslocava-me várias vezes a uma padaria no Campo Pequeno para comprar grissinos a granel. E, numa dessas deslocações, encontrei-me à porta da dita padaria com aquele que havia sido meu professor no primeiro ano da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa na cadeira de História de Direito Português, mais de dez anos antes daquele encontro - o Professor Nuno Espinosa Gomes da Silva, felizmente ainda vivo. Na conversa que então tivemos sobre o ambiente que se vivia na Faculdade de Direito, o Professor Nuno Espinosa contou-me que, numa aula prática de Direito Penal, havia sido colocada uma hipótese de facto para que os alunos se pronunciassem sobre a qualificação do crime praticado: furto ou roubo. Em vez de se abrir uma discussão ou debate sobre a posição de cada um com a respectiva fundamentação, foi entendido que democraticamente a questão devia ser resolvida através de votação. Não me lembro dos números exactos, mas tenho presente que ganhou a qualificação como roubo pois teve mais votos que a qualificação de furto. Na altura, incrédulo, esbocei uma gargalhada como se estivesse perante um quadro de uma revista que parodiasse o ambiente que se vivia então. Mais tarde, face ao ridículo da situação, fiquei triste pelo que isso significava de errado sobre o que é democracia, e fiquei sem dúvidas que mais cedo ou mais tarde pagaríamos a factura desses desvarios pseudorrevolucionários.
Em todo o caso, estava longe de pensar que quarenta e seis anos depois, uma denominada Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol votasse através de um cobarde voto secreto pareceres fundamentados sobre a matéria em causa. Por isso, quando soube que a questão ia ser decidida desta forma, logo me ocorreu o episódio relatado pelo Professor Espinosa. Dava tudo e mais um par de botas para saber como é que cada um dos delegados fundamentava o seu voto, ou talvez não devesse dar porque seria um espectáculo intelectualmente degradante! Como se pode concluir que esta questão foi democraticamente resolvida só porque foi votada, sem qualquer fundamentação por parte de quem votou. É uma vergonha: mais valia resolver por moeda ao ar!... Seria uma questão de sorte e não de indigência mental. Por isso, a única crítica que faço ao Sporting Clube de Portugal nesta matéria é não ter levado até às últimas consequências o não reconhecimento de competência à Assembleia Geral da FPF para decidir desta questão. Em minha opinião -  sincera - porque não descortino em que é que se fundamenta a competência da assembleia geral para deliberar nesta matéria. Na prática, porque ninguém tinha dúvidas, que as forças que se digladiam na Federação Portuguesa de Futebol, há muito tempo que não são favoráveis ao Sporting Clube de Portugal, bem pelo contrário. Qualquer batalha, que não seja pela via judicial, tem pouca probabilidade de ser ganha! Espero que o Sporting Clube de Portugal não abandone esta guerra legítima só porque perdeu uma batalha que já se sabia ir ser perdida. Ficar por aqui seria pior que não ter feito nada. Não podemos pactuar com o facto de pareceres fundamentados e intelectualmente honestos, e assinados, sejam derrotados pelo poder do voto secreto em nome de um porque queremos e podemos, sem qualquer fundamentação. Não, isto não é democracia.
Tenho a maior estima e consideração pelo Presidente da Federação Portuguesa de Futebol, que em muitas matérias tem feito um trabalho notável, reconhecido por muita gente, na qual me incluo. Mas nesta matéria, com o devido respeito, acho que agiu como Pôncio Pilatos: pediu os pareceres e entregou-os à assembleia-geral, lavando as mãos de uma decisão que devia ser sua e da sua Direcção. É capaz de explicar porque é que os pareceres não estão correctos? A única explicação que tem para dar é que a assembleia-geral deliberou mandá-los para o lixo. É muito pouco da parte do Presidente da Federação Portuguesa de Futebol!...
Por outro lado, aquilo que penso da Assembleia Geral da Federação Portuguesa de Futebol está expresso no título que entendi dar à minha crónica de hoje. Na verdade, a minha geração e as anteriores (e, algumas, posteriores) sabem que, apesar do seu carácter acessório na estrutura dos órgãos do poder político do salazarismo, a Câmara Corporativa tinha um papel relevante no regime autoritário português no que respeita à concepção e definição das políticas públicas. Conjugando representantes de vários interesses, a Câmara Corporativa constituiu um decisivo elemento de suporte técnico da ação governativa ditatorial, reflectindo e ampliando os principais debates que envolveram a política do Estado Novo. A criação da Câmara Corporativa inseriu-se, de resto,  dentro da lógica do regime corporativo defendido por Salazar e adoptado pelo denominado Estado Novo. O corporativismo é uma forma de organização político-económica da sociedade, que implica a existência de corporações, isto é, grupos ou corpos profissionais que assumem o controlo dos principais aspetos da política económica e outras, ficando o Estado sem intervenção relevante a esse nível. O corporativismo continua aliás a estar muito presente na sociedade portuguesa o que deve deixar Salazar muito satisfeito, onde quer que esteja! E na organização do sistema desportivo, e, particularmente, no futebol, as corporações dos vários interesses sempre estiveram e continuam presentes - o denominado sistema que sempre existiu e continua a existir. A Assembleia Geral da FPF sempre foi dominada por corporações - no passado, as associações distritais -  a que se juntaram, no presente, as associações dos árbitros, outras associações de clubes, sindicatos, associações de treinadores, enfermeiros e massagistas, médicos e dirigentes. Assim se conseguem, com relativa facilidade, os sindicatos de voto, em que importa o voto, não importa o fundamento do sentido de voto.
A meu ver a composição da Assembleia Geral da FPF contraria a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (Lei 5/2007, de 16 de Janeiro), sendo certo, de resto, que, em minha opinião, viola todas as Leis de Bases até hoje aprovadas na Assembleia da República após o 25 de Abril. Na verdade, a Lei de Bases citada, e actualmente em vigor, configura o conceito de federação desportiva da forma seguinte: pessoa colectiva constituída sob a forma de associação sem fins lucrativos que englobando clubes ou sociedades desportivas, associações de âmbito territorial, ligas profissionais, se as houver,  praticantes, técnicos, juízes e árbitros e demais entidades que promovam, pratiquem  ou contribuam para o desenvolvimento da respectiva modalidade, preencham cumulativamente requisitos, que, para o efeito, não interessa estar agora a enunciar. Fica claro, mesmo para um leigo, que as pessoas colectivas englobadas numa federação desportiva são os clubes ou as sociedades desportivas e as associações de âmbito territorial e as ligas profissionais se as houver, o que, no caso concreto acontece. Compreende-se aliás que este tipo de associações, juntamente com praticantes (sindicalizados ou não), com treinadores (da ANTF ou não), juízes e árbitros (da APAF ou não) promovam, pratiquem ou contribuam para o desenvolvimento do futebol. Gostaria que me explicassem como é que o Sindicato representa os praticantes de futebol, quando ele apenas representa os jogadores de futebol que se encontram vinculados a um clube por força de contrato de trabalho desportivo; e como é que promovem, praticam ou contribuem para o desenvolvimento do futebol quando por vezes as suas reivindicações até se chocam com os interesses do futebol, sendo certo que nenhum dos princípios fundamentais consagrados nos seus estatutos tem a ver com os fins e objectivos da federação desportiva. Gostaria me explicassem o que é a Associação Nacional de Treinadores de Futebol que se assume como organização sindical dos treinadores (mas não usando, por complexo que se ignora, a designação de sindicato), e que não representa, portanto, todos os treinadores de futebol e orienta a sua acção dentro dos princípios da unidade e democracia sindical entre todos os trabalhadores, por uma organização sindical livre, independente e solidária tem a ver com a prática, promoção e desenvolvimento do futebol. E o mesmo se diga da APAF que se assume também como organismo de classe, independentemente do poder efectivo que tem sobre a arbitragem, e, por isso mesmo, se encontra num estado que em nada contribui, antes pelo contrário, para a promoção e desenvolvimento do futebol. É por isso que eu entendo que a Assembleia Geral da FPF constitui a Câmara Corporativa do Futebol, ou seja, uma amalgama de interesses com um único objetivo - o poder!
O Sporting Clube de Portugal completou ontem 116 anos verdadeiros, isto é, contados da data da sua fundação. Bem gostaria de saber o que pensa a assembleia geral da FPF sobre a data da fundação de outros filiados e que sobre ela votasse. São 116 anos de uma história inigualável e que nunca será alcançada pela Federação Portuguesa de Futebol que representa apenas uma modalidade, enquanto o Sporting Clube de Portugal tem representado Portugal em várias modalidades com sucesso assinalável e que fazem dele a maior potência desportiva nacional. Faça o que fizer a Federação Portuguesa de Futebol não apagará a história do Sporting, pois até o maior feito desportivo da FPF se encontra ligado à formação do Sporting Clube de Portugal. Merecia o Sporting e a sua história mais respeito, mas compreendo que seja difícil respeitar, quem não tem respeito por si próprio!...