Karaté: etnografia de uma prática corporal (artigo de Vítor Rosa, 208)

Espaço Universidade Karaté: etnografia de uma prática corporal (artigo de Vítor Rosa, 208)

ESPAÇO UNIVERSIDADE04.09.202217:11

Como se diz normalmente, o karaté é uma arte marcial. É uma arte, dado que ele permite um campo de inúmeras formas de o homem e a mulher se construírem. É uma identidade! Numa entrevista efetuada em maio de 2011, um praticante graduado de karaté responde-nos desta forma: “construí um percurso de aprendizagem, de consolidação de conhecimentos, de socialização, de amizade, de aperfeiçoamento técnico e descoberta, motivo de interesse até por outras artes marciais e desportos de combate. O enquadramento e responsabilidade institucional, como treinador e árbitro, as rotinas diárias e de calendário oficial formativo e competitivo, restruturaram a minha vida pessoal, que o karaté assume hoje uma componente incontornável, que se funde com a familiar e profissional. É uma forma de estar, de me relacionar e de realização pessoal. Disciplina e dedicação em função de objetivos, enquanto competidor federado e da seleção nacional, árbitro internacional de alto rendimento e instrutor de classes de jovens e adultos, quer na vertente mais desportiva, quer na mais marcial, vincula a minha organização pessoal. Hoje, o karaté é parte da minha identidade”.
 

Para se compreender o karaté, é preciso penetrar na cultura nipónica e na sua relação com a cosmologia. Esta arte marcial oferece um conjunto de técnicas, corporais, mentais e espirituais, tornando o praticante mais perfeito, harmonioso e unificado. Muitos karatecas recusam aceitar o karaté como um desporto, mas a forma como é ensinada se identifica exatamente a uma prática desportiva (Rosa, 2017). As artes marciais japonesas, das quais o karaté faz parte, têm a sua origem na cultura samurai, que marca o tempo da feudalidade japonesa, que se estende dos séculos XII ao XIX. A cultura samurai desenvolve-se numa promiscuidade evidente com as religiões, como o budismo ou o xintoísmo. O samurai e o código bushido ainda animam o inconsciente coletivo japonês. O etnólogo Chie Nakane revela-o no livro “La société japonaise”, mas Yukio Mishima prova-o no “Le Japon moderne et l’éthique samourai”. O especialista em karaté e sociólogo Kenji Tokitsu (1979), diz que as artes marciais apresentam uma forte vontade de fusão com o princípio universal da vida, que inclui a morte, dado que, neste pensamento, a morte não é mais do que uma fase da vida. Os heróis míticos servem de mediação entre o inconsciente individual e os fantasmas coletivos, mais ou menos conscientes. No fundo, as artes marciais são uma mercadoria ideológica que tornam o Japão célebre no mundo. As artes marciais japonesas, quaisquer que elas sejam, beneficiam de uma popularidade que as artes chinesas, coreanas ou tailandesas não conseguem atingir. Na prática do karaté encontramos um funcionamento muito hierarquizado, com as suas instituições, os ritos, os rituais e os mitos. Os praticantes de karaté encontram qualquer coisa mais do que na prática do boxe, por exemplo, como refere Le Rest (2002). Existe a importância do dojo, do kimono, dos rituais como a saudação, o caminho da progressão com a aquisição da graduação, a incorporação de qualidades como a confiança em si próprio, o controlo das emoções e o respeito pelos outros. Outros autores franceses (Patrick Baudry ou David Le Breton) colocam a prática das artes marciais nas condutas de risco.
 

O karaté é mistificado pelos karatecas. Mas nem todos os instrutores/treinadores têm o mesmo carisma e não empregam todos os rituais japoneses. É preciso assistir aos treinos dos mestres japoneses para se sentir a força dos ritos, dos signos e dos símbolos. Os praticantes imitam as técnicas, os gestos e as posturas que observam. Muitos procuram compreender o sentido dos gestos que produzem e se satisfazem com a suposta eficácia das técnicas. As técnicas do corpo colocadas em jogo no karaté permitem construir as representações místicas. No caso do karaté, muitos nem sabem que as técnicas são provenientes de Okinawa, da China e, antes disso, da India.
 

O combate é a razão que motiva os karatecas na prática.  Para evoluir neste combate, eles se conformam com a exigência de um trabalho técnico (kihon, kata, ippon kumité) e aos ritos, como a passagem de graduação. O corpo de cada praticante é portador de um saber, de uma aquisição, de um percurso, de lesões, de fraturas, de fraquezas, de dores, de incapacidades, de equilíbrio, etc. É, muitas vezes, na dor que o praticante constrói a sua relação com o corpo. Os katas constituem a memória da arte de combate. Cada kata representa um combate real contra um ou mais adversários imaginários. Os katas exigem repetição, procurando aperfeiçoar as técnicas de defesa e de ataque. E é a graduação que determina o valor do karateca. Qual é o papel do treinador? A resposta de um praticante avançado (4.º dan) de karaté, estilo Goju-Ryu, é esta: “o treinador é sempre um modelo. Como ainda estamos numa fase de reprodução, o exemplo do treinador influenciará sempre – positiva ou negativamente – o praticante”.

Referências:

Baudry, P. (1991). Le corps extreme. L’Harmattan.

Le Breton, D. (1991). Passions du risque. Métailié.

Le Rest, P. (2002). Le visible et l’invisible du karaté: ethnographie d’une pratique corporelle. L’Harmattan.

Rosa, V. (2017). A prática desportiva do karaté em Portugal. Análise sociológica sobre as identidades, ideologias, comunidades e culturas dos karatecas (cintos castanho e negro) portugueses. Tese de Doutoramento em Educação Física e Desporto. FEFD/ULHT.

Tokitsu, K. (1979). La voie du karaté. Seuil.

Vítor Rosa

Sociólogo, Pós-Doutorado em Sociologia e em Ciências do Desporto, Doutor em Educação Física e Desporto, Ramo Didática.