Memória, desporto e paisagem (artigo de Manuela Hasse, 13)

Espaço Universidade Memória, desporto e paisagem (artigo de Manuela Hasse, 13)

ESPAÇO UNIVERSIDADE13.12.201913:16

De que forma fariam a história os jogadores, os treinadores, os árbitros, os técnicos, os médicos, os nutricionistas, os fisioterapeutas, os psicólogos, a assistência, o apanha bolas, o jornalista, o repórter, os agentes dos jogadores e dos treinadores, os corpos policiais, os presidentes dos clubes, os políticos? De que modo se poderiam eventualmente cruzar as perspectivas de ‘uns’ e de ‘outros’ e de ‘todos’ entre si? E com a história dos ‘historiadores’ consoante os problemas, os pontos de partida de ‘uns’ e de ‘outros’? Que história poderia resultar do encontro, do cruzamento entre as perspectivas esboçadas e ‘alcançadas’ pelos próprios historiadores entre si? E dos economistas e os historiadores? Ajustadas ou não, certamente completar-se-iam e enriqueceriam o conhecimento de quantos a esse registo poliédrico tivessem acesso.

Para isso, seria necessário tempo. Um tempo sem pressa, que a sucessão veloz cada vez mais acelerada e compacta dos acontecimentos não permite ao assentar nem de episódios nem de grandes sínteses. Seria necessário ainda a formação de grandes equipas de estudiosos de áreas distintas, estudiosos dedicados e desinteressados de outros objectivos paralelos – carreiras, financiamentos, interesses partidários ou clubísticos, rivalidades, prestígios, poder, qualquer outra forma de ascendente – onde a memória recente e a distante se reconstituíria a partir de entrevistas etnográficas, entrevistas de jornalistas e de repórteres, conferências de imprensa, histórias de vida, as diversas biografias, registos médicos, estudos biomecânicos, fichas de psicólogos e de fisioterapêutas, inovações técnicas e tecnológicas, tipos de treino, análises de jogo, sistemas tácticos, provas diversas, de diferentes equipas, de sponsors distintos e ‘obrigações’ inerentes – como a exibição de sapatilhas, para destaque de uma marca, em vez da bandeira nacional, ou de uma camisola com uma determinada marca bem vísivel no peito, em vez de uma vestimenta formal num encontro promovido pelo responsável máximo da nação. Seria necessária uma vasta equipa de especialistas de áreas distintas o que não se afigura acessível por diversas razões.

Quando vivemos a história de um tempo, de um lugar, de uma instituição ou de um fenómeno social em particular – por exemplo a ginástica sueca, a ginástica artística, a ginástica rítmica desportiva, um desporto qualquer, seja o golfe, a vela, o pentatlo, o tiro, o judo, o ciclismo ou o futebol,  o confronto com a história feita pelos historiadores e a história pessoal e colectiva não se ajusta por inteiro e desperta naqueles que a viveram directamente uma impressão de estranheza. Se por um lado a história elaborada pacientemente pelo historiador procura dar coerência aos dados reunidos, por outro, a experiência de quem nela participa no seu quotidiano de décadas parece destacar o que escapou ao trabalho cuidadoso do historiador. Esta situação não pode deixar de nos levar ao questionamento da própria história, do que fica para a consideração do historiador, e daquilo que lhe escapa, aquilo que foi a realidade vivida por quantos participaram nos problemas estudados. Esse espaço entre a experiência dos factos (vivida por uns) e a recolha e tratamento daquilo que fica inscrito em diferentes documentos disponíveis, analisados segundo procedimentos cientificamente conduzidos (operação construída pelo historiador), corresponde ao lugar da vida vivida, dos encontros e desencontros, dos sentimentos, das ideias e das suas diferentes perspectivas, dessa amálgama de aspectos que a vida em comum de certa maneira depura, a vida que pulsa e que se esvai do trabalho do historiador. Na história de um tempo de vinte, trinta, quarenta anos a memória salvaguarda as impressões inscritas que se destacam, as repetições e coincidências são marcadas pela unanimidade, ou quase, e as diferentes narrativas do vivido acabariam por enriquecer a síntese do historiador mais atento, mais voltado para a sensiblidade do vivido, do mais profundo.

Interessante é assinalar que a palavra história vem da palavra histor que significa testemunha, aquele que presencia, aquele que nessa condição de alguém que, de certa forma, participou em algo significativo e que merece ser transmitido aos outros os quais, por sua vez, farão inevitavelmente o mesmo consciente ou inconscientemente. Essa testemunha é a história viva, ela é a prova daquilo que viu, daquilo em que participou nem que fosse apenas como assistente de uma representação dramática, cómica, trágica. E é assim que a história antes de ser do historiador é daqueles que a viveram, que a testemunharam, que a transmitiram aos outros, aos mais novos, a todos – para que não esquecessem, para que cuidassem desse conhecimento feito de um capital de experiência, e que o partilhassem com os mais novos  os quais, por sua vez, o haviam de passar aos outros, aos vindouros. No caso do desporto, atletas, jogadores, treinadores, equipas técnicas, são simultâneamente participantes, intérpretes, narradores da sua experiência e aí, nesse quadro do vivido, entra também o jornalista, o repórter, o comentador especializado e sério, o fotógrafo. Cada um com o seu registo, a sua perspectiva daquilo que acompanhou, de que fez parte. Muitas vezes, as interpretações multiplicam-se, podem também afastar-se e estarem  longe de ser coincidentes – veja-se a novela permanente, excessiva e saturante do futebol nacional. É só isso? E tanto alarde?

Se a participação é marcada pelo facto de ser parte de algo, ou da vida de alguém, de um agir, de uma actuação, de um envolvimento directo ou até indirecto, ela é também com o decorrer do tempo um distanciamento inevitável. Face ao olhar crítico do historiador, construído na escolha dos dados que reune depois de seleccionados segundo uma questão inicial que o orienta, a confrontação com aquilo que ficou registado obedece a uma perspectiva exterior, de fora, o historiador encontra-se separado, na verdade – excluído. O valor da memória, elaborada pelo historiador numa perspectiva fria, desligada de qualquer emoção e antes do mais dominada pelo espírito lógico e racional, não pode coincidir com o registo feito pelo interveniente, o observador envolvido, a testemunha,  as situações onde a emoção acentua diferentes tonalidades do contexto, as entoações e a ênfase da própria palavra, a partilha, o mundo da experiência directa onde a transmissão é assegurada pelo sensível, a impressão como marca da situação tal como foi vivida por aquele que a relata, que a transmite e assim a passa aos outros.

A realidade de ‘uns’, a realidade de ‘outros’ e a realidade dos historiadores e dos especialistas das áreas humanas e sociais é inevitavelmente parcial, limitada a um ponto de partida, a um período possível de abarcar dentro de restrições diversas, até de acesso aos principais intervenientes no fenómeno desporto. A relação entre todas as perspectivas, entre todos os níveis de análise é dificultada pelas exigências de um trabalho sempre limitado pelo tempo sentido sempre como sendo curto.   

 É importante cruzar a história enquanto construção do historiador e a memória enquanto cultura, tradição e transmissão. Ou seja, uma maneira de ver aquilo que foi vivido, por exemplo a participação numa vida, numa guerra, num desporto, numa competição, num jogo, a necessidade de o contar, como se diz, de falar sobre isso e de legar a quem quer que se disponha a ouvir ‘aquilo que foi’ tal como foi vivido por aquele que o transmite – seja a situação geral, as ideias dominantes, o espírito do tempo, seja a situação pessoal, familiar, do círculo de amigos, de colegas, de uma nação. É o discurso directo que passa a indirecto por aquele que o afirmou. A história do historiador ficaria desta forma enriquecida pelos condimentos da vivência, o sabor da experiência sentida e quantas vezes pensada sobre o olhar de cada interveniente no jogo da vida, da multiplicidade de factores recortados do vivido, verdadeira observação participante ligada profundamente ao facto de estar e, ao mesmo tempo, de distanciar-se, de obrigar-se ao distanciamento que a possibilidade de algum tempo mais acentua e organiza. Decerto aí, o jornalista de investigação, que escasseia na nossa sociedade e em particular no universo desportivo, estaria mais apto a captar essa parte do registo histórico. E para isso não basta a certificação académica mas, antes, a vontade de ir ao fundo das questões do humano sem montar espectáculo sobre o que quer que fosse – nem mesmo sobre o espectáculo.  Quando Fernando Mamede desistia, em vez da crítica a compreensão. Apesar de tudo, o atleta não é ainda uma máquina – nem o será.

De um modo geral, quer a perspectiva dos profissionais do desporto ou dos amadores, uns e outros  ligados ao desporto a diversos níveis, quer a perspectiva do historiador académico ou amador, ou ambos (o caso de Rómulo de Carvalho, físico e historiador da física em Portugal), confronta-se com a dificuldade de construir (de re-construir) a relação entre as partes (o jogo, o atleta, a técnica, a habilidade, as ciências do desporto, a entrevista, a conferência de imprensa, a biografia, o clube, os adeptos, etc.), a relação que representa o todo social. A única maneira de ver (compreender) essa linha ténue onde o social se materializa é onde o todo social é personificado, onde o social é compreendido como totalidade – o que exige um olhar preparado. Preparado pela vida, preparado pela capacidade de ler o todo num simples facto, esse facto que precisamente se apresenta à maioria como insignificante, por exemplo, a derrota, a vitória, o êxito, o prémio, a lesão, a imensa frustração, a igualmente imensa vontade de vencer que impele para a frente. Depois de várias lesões, de várias operações uma delas ao pescoço, Johnny Wilkinson manifesta, quase no limite da sua carreira de jogador de râguebi todo espatifado, que finalmente encontrou o acordo entre o seu corpo e o seu ser equilibrado, justo. E Garret Thompson, herói nacional também no râguebi, casado e pai de família, depois de assumir a sua homosexualidade, depois de assumir a sua situação de doente com HIV, aceita finalmente a sua fragilidade, talvez a sua mortalidade – que a lenda já tornou imortal.

E chegamos áquele ponto no caminho onde estamos perante a paisagem. Esse lugar de onde se avista tudo, onde é possível  ter uma visão geral do que se encontra diante de nós. ‘A’ paisagem pois sempre nos remete para um lugar de onde viemos, um lugar físico e ainda simbólico, um espaço de pertença (que se aceita ou se rejeita), um sítio onde existem profundos laços em comum, as raízes do ser individual que é sempre também colectivo – parte integrante de todos, do que para nós é ‘tudo’. O país, a região, o lugar de onde viemos e onde uma identidade foi forjada em cada um de nós, uma construção mental que nos estruturou e que nos acompanha ao longo da nossa existência, da nossa vida biológica também. Ao contar-se os feitos do desporto reduzindo-os aos resultados, e só os primeiros ‘valem’ pois tudo é o resto é assumido pelos apressados profissionais da comunicação social (e outros) como ‘sem valor’, logo verdadeiramente desvalorizados, reduzindo as performances (representações), aos ‘milhões de euros’, às habilidades, ao corpo atlético, ao físico, a matéria que os torna visíveis, aos casos diversos e aos faits-divers, torna as pessoas ‘uma coisa’, um bem móvel, de quem é uma posse de algo, de alguém, omite o carácter da gente que faz com que o desporto seja o fenómeno que é, na verdade, não pelos resultados mas por aquilo que de nós se vê (vemos de nós) em cada prova. Quando cada um de nós tem uma história, e essa história integra-se na história colectiva, comum, pelo que a partilha daquilo que cada um viveu no contacto com um colega, um amigo, um professor, um actor (sempre seres individuais totalmente sociais) terá aspectos secretos, silenciosos, ocultos, mas terá sempre ainda uma dimensão de todos que os sobreviventes não podem deixar de legar. Dessa forma será possível construirmos a nossa história, mais próxima daquilo que, o nosso vivido em comum é, nos tornou aquilo que somos, e necessariamente – aquilo que genuinamente queremos ser.  

Manuela Hasse
 Professora Associada Agregada

Coordenadora do Centro de Estudos

Desenvolvimento do Desporto-Noronha Feio

Departamento de Educação, Ciências Sociais e Humanidades

Faculdade de Motricidade Humana

Universidade de Lisboa