Volta a Portugal Povo abraça Estrela e corredores numa festa sem igual
Cadeiras de praia, chapéus de sol, lancheiras e geladeiras a abarrotar de víveres, a bela da toalha de piquenique estendida e procura pela sombra fresca enquanto não chegam os corredores que saíram de Mação à Torre, na majestosa Estrela, palco da chegada da 5.ª Etapa da volta a Portugal, esta segunda-feira: o povo chegou em peso e reivindicou o seu direito de transformar a Volta a Portugal numa enorme festa e jornada de convívio icónica que atravessa e seduz gerações.
Como A BOLA pôde testemunhar, o primeiro grande banho de multidão ao pelotão está preparado para as 17.30 horas deste sexto dia de competição (prólogo mais cinco tiradas). E é Joaquim Silva, de 31 anos, corredor da Efapel, o primeiro campeão vitoriado na beira das estradas.
As marteladas das estacas com tarjas e os nomes, a preto, dos sete corredores da equipa em fundo laranja – Henrique Casimiro (na sua 14.ª Volta), Pedro Pinto, o russo Aleks Grigoriev, Rafael Silva, Tiago Antunes, Joaquim Silva e Emanuel Duarte -, à beira da estrada, já a menos de 1 km da chegada, levam-nos a determo-nos no local: são os vizinhos de Joaquim Silva, de Cabeça Santa (Penafiel), sem falhar uma no apoio. «Todos os anos, não pode falhar, vimos sempre!»
«É gente muito boa, humilde, damos-lhe todo o apoio que podemos, merece. Tem origens pobres, e é nobre», diz-nos o líder do quinteto, Lourenço Rocha, de 51 anos, com indisfarçável orgulho do corredor. Ao lado, Helena e Ermelinda explanam o farnel na ‘mesa’ serrana.
«A mala veio carregada: salpicão, queijo, chouriço, bolinhos de bacalhau, muita água, vinho branco. E muito ‘casqueiro’ [pão], além de pão com chouriço» trouxe um quinteto, além das t-shirt’s personalizadas a preceito, laranja vivo, mas com o nome dos seus ídolos a preto. O mesmo laranja que polvilham no alcatrão da tortuosa subida de cortar a respiração… mas pela vista e cenário de sonho.
Intervalo para os comerciais
O receio de os pneus ficarem da cor da fruta, com a tinta fresca, assaltou os repórteres à despedida e continuação da ascensão até à Torre, polvilhada, também, por jogada de marketing promocional da ABTF: a equipa liderada por António Carvalho (terceiro na Volta-2022) colocou estrategicamente nos escassos pontos de possível pausa da estrada até lá acima… vistosos camiões-betoneira vermelho vivo, que não passam despercebidos. Tal como as flâmulas brancas dispostas a intervalos de 20 metros na beira da serpente até lá acima pela Associação dos Profissionais da Guarda da GNR, em luta laboral pela possibilidade de criação de um sindicato nesta força paramilitarizada, à qual a brutal exposição mediática da Volta dá outra visibilidade.
O Rafael é que era
Meia dezena de metros adiante, num ‘spot’ de fazer inveja – a explicação é simples, vieram de véspera e já lá pernoitaram, havia mais lugares apetecíveis para saborear a serra, o ar, a natureza e ciclismo – Martinho Ferreira, de 49 anos, camionista a residir em Grutas de Santo António (Alcanena) mas natural de Condeixa-a-Nova, exulta com sítio que dá 10-0 a um ‘lounge vip’ de qualquer aeroporto.
«Isto não tem preço. Não se paga. Ainda mais para quem passa a vida na estada. Vocês já vão em 2300 km em seis dias na estrada? Olhe, amigo, eu sou camionista e a média são 3500 km por semana, só por França, Espanha e Portugal. Tenho autoridade para lhe dizer que… não há festa como esta», diz Martinho, nascido no dia do santo do mesmo nome.
A mulher, Ema, concorda, enquanto se afunda na cadeira de praia. O Tomás Fortunato lança uma aposta: «Gostava que ganhasse o Rafael Reis. Isso é que era... Mas ele é 'sprinter', e agora já é montanha, é mais difícil». Martinho revela, a propósito das betoneiras móveis para fazer cimento polvilhadas pela ABTF pela serra, que não é dos camiões mais perigosos.
«Os que mais cuidado me exigem são aqueles em que transporto carne pendurada para consumo. Assustadores para a maioria das pessoas são os porta-automóveis, aqueles que levam os carros», é o veredito do ‘expert’ de pesados de mercadores. Juntámos à lista os do transporte de gado vivo, em especial porcos e vacas, pelo aroma. Ele concordou.
A melancia é que não pode faltar
Mais atrás, Armando Saraiva, de 50 anos, cangalheiro de profissão e com uma camisola do ‘Trail Pastor’, pertence a um grupo de BTT e, a brincar, diz-nos que nada revela sem primeiros irmos ‘ao castigo’ e provar do que ali está à vista para forrar a blusa. «Vimos todos os anos, de Aveiro. E de véspera, e com partes do trajeto de bicicleta. Como aqui uma broa, ande, que já está com uma barriguinha respeitável para alimentar. E há chouriço. O que não pode faltar é a melancia. Quem vai para a serra, avia-se em terra», sublinham os compinchas de jornada, preparados para torrar um dia ao sol enquanto não chegam os ases do pedal.
Manilha seca, tirador cheio
Mesa em equilíbrio precário, porque sobre as rochas, mas com direito a guarda-sol e até a um singular… tirador de cerveja de pressão (barril incluído), um quarteto de amigos da cidade do conhecimento bate uma valente cartada enquanto o néctar escorre pelas gargantas. «Pois, isto não se vende na loja, mas sabe, nós temos conhecimentos. Se é uma ‘suecada’? Tudo: bisca, lerpa, sobe e desce, uma ‘kingalhada’», diz-nos o Luís, de camisola do Benfica no tronco, e que, com o Cajó, Rui e Branco, fazem da espera o prazer da festa. E sai mais uma ‘unha’… ou ‘no comments’ para o repórter.
Pés no ar e respiração em suspenso no teleférico
Lá em cima, Manuel Maximino despacha queijos e presuntos no ‘shopping’ como pode. O repórter volta a ter de provar, agora uma lasca de queijo da Serra e outra de presunto. Categoria. «Isto é o que é nosso. Vai-se vendendo. Se faltar isto, é que não há festa», resume por entre um aroma… esmagador. Até vacas a pastar vieram ver chegar os corredores.
De onde se mira na perfeição é do teleférico da Estrela, mais próprio para a época de esqui do que na canícula de verão. Um km e meia hora de «puro prazer», diz-nos o Fábio Varela, de 29 anos, que viajou com a família desde Mora para ver os ciclistas e ser protagonista ativo na festa do povo.
As crianças não pagam até aos 10 anos, os adultos deliciam-se, por €7,5 com uma vista de sonho. «É brutal, mas eu tenho vertigens. Andei a maior parte do tempo com os olhos fechados», confessa a Inês Pereira, de 31 anos. Os funcionários confirmam: «Há muita procura, até no verão, não é só com neve». Pudera: se não tem o monopólio do teleférico de desportos de inverno em Portugal, anda lá perto.