A BOLA FORA «Os sul-coreanos cuidam-se muito, parecem de porcelana»
Jogou os últimos seis meses no Busan Ipark, na Coreia do Sul, país hiperconetado com a internet mais veloz do mundo. Gostou da aventura asiática, mas foi Málaga que o encantou e o convenceu a investir em Espanha. Renato Santos, extremo de 30 anos, natural de Pardilhó, está livre e aguarda propostas para voltar ao ativo.
- À hora que te ligo, o que estás a fazer?
- Estou em casa, em Málaga. Tenho aqui o meu sogro a trabalhar, estamos a fazer umas obras de remodelação.
- Já não estás vinculado ao Málaga, camisola que vestiste de 2018 a 2020, mas continuas a viver em Espanha.
- Sim. Inicialmente comprei a casa como investimento, mas agora estamos a pôr tudo ao nosso gosto e desisti da ideia de alugar. Apaixonámo-nos pela vida no sul de Espanha, mais precisamente pela Costa del Sol. Tem um clima fantástico: em dezembro estão 18, 20 graus durante o dia. Podemos andar de t-shirt, passear na praia… Gostamos muito do conceito de vida aqui e fomos bem recebidos pelos espanhóis.
- O campeonato na Coreia do Sul terminou no final de outubro e agora estás livre. Tens alguma coisa em vista?
- Tenho recebido algumas abordagens, mas nada em concreto. Estou aberto a propostas. Por isso, não sei se regressarei à Ásia, se vou continuar por Espanha ou se volto ao campeonato português. Tenho fé que vai tudo correr bem.
- Em julho assinaste pelo Busan Ipark, da II Divisão da Coreia do Sul. O contacto surgiu através do treinador português Ricardo Martins Peres?
- Sim, foi o mister que fez força para ir para lá. Ele contactou-me, perguntou-me se estaria interessado e eu disse-lhe que sim. Estava a terminar contrato com o Volos da Grécia e acabou por ser uma boa altura para definir logo a minha vida. A nível desportivo, o Busan Ipark é um clube organizado e sério, de primeira liga, que oferece ótimas condições de trabalho. Lá não nos falta nada. A nível de jogo, cheguei a meio da temporada coreana e precisava de fazer pré-época quando eles já iam a meio da época. Isso é complicado para um jogador. Além disso, ainda tive de fazer uma quarentena de 14 dias com a minha família. Foi difícil e pensámos muitas vezes em ir embora. Nem ao lixo podíamos ir…
- A quarentena foi em casa ou num hotel?
- Em casa. Tratei da casa antes de viajar, porque se não déssemos uma morada no aeroporto, teríamos de fazer a quarentena num dos hotéis deles e isso seria ainda pior. Eles são muito rígidos: há uma aplicação que localiza as pessoas o tempo todo e se a aplicação estiver desligada mais do que cinco minutos, vão logo a casa.
- E como é que se organizavam com as compras?
- O clube tem um tradutor que ajuda os estrangeiros. Durante a quarentena, fizemos uma lista do que precisámos, ele foi ao supermercado e depois deixou as coisas à porta de casa. Não houve contacto com ninguém.
- Vi que Busan tem quatro milhões de habitantes e é uma cidade muito moderna. Ficaram surpreendidos?
- Antes de irmos para a Coreia, pesquisámos muita coisa e vimos fotografias, mas mesmo assim fomos surpreendidos quando lá chegámos. Busan é uma cidade incrível e as pessoas são espetaculares. É engraçado, porque normalmente associamos a Coreia aos chineses e aos chineses que estão em Portugal e isso é completamente errado. Os sul-coreanos têm uma cultura muito própria. Em primeiro lugar são muito sérios. Vim embora no fim de outubro com dois salários por receber - novembro e dezembro [o contrato termina a 31 de dezembro]. Um deles já foi pago e sei que o outro será no final do ano. Estou tranquilo e sei que lá não falham.
- Há paixão no futebol coreano?
- O conceito de jogo de futebol é muito diferente na Coreia. Lá é muito americanizado, as cheerleaders dançam durante o jogo todo para entreter as pessoas e puxar pela equipa. E se perdermos, elas dançam na mesma. Para eles, um jogo de futebol é apenas entretenimento, não se vive com a garra e a paixão da Europa. Não há pressão, não há aquele nervoso de ter de ganhar. Também não há confrontos nem insultos entre adeptos, nem assobiadelas. As pessoas comportam-se no futebol como o fazem noutro tipo de espetáculo. Gostam de ver um lance bonito, aplaudem, mas sem fanatismo pelas equipas.
- E a qualidade da Liga?
- É boa, porque eles são muito organizados e há jogadores com qualidade a nível técnico. Eles trocam bem a bola, têm bom toque de bola. A nível tático não são tão fortes como na Europa, mas acredito que muitos poderiam ter sucesso cá, porque - como se costuma dizer - sabem jogar à bola. Na minha opinião, é a língua que limita a progressão para o futebol europeu.
- O espírito de balneário é muito diferente?
- Sim, pelo facto de serem mais reservados. Eles gostam de ter o espaço deles e quando vão treinar estão focados na parte individual. São alegres quando há brincadeiras, mas não posso comparar a um balneário português. Depois há outra vez a questão da língua. Consigo trocar uma palavra ou outra em inglês com os meus colegas, mas não dá para ter uma conversa fluída - a maioria não entende.
- Há algum pudor em relação ao corpo?
- É totalmente o contrário do que estava à espera. Os meus colegas são desinibidos e é o povo mais cuidado com a imagem que já vi. No duche, usam um esfoliante para a cara e outro para o corpo. Andam sempre com um cesto cheio de produtos de beleza. No fim do treino, metem serum na cara; no início nem sabia o que isso era. Os sul-coreanos cuidam-se muito, parecem de porcelana. E não apanham sol, é por isso que há chapéus de sol em todas as passadeiras. As pessoas usam enquanto estão à espera do sinal verde. Também se vê muitas mulheres com sombras de tecido e com camisola de manga comprida com quarenta graus. Tudo para protegerem a pele do sol.
- E como fazem na praia? Vi que em Busan há praia…
- Também andam tapados. É raro ver uma mulher de biquini ou de fato de banho - usam roupas térmicas e compridas. Uma curiosidade é que eles vão de bóia para a água. A maioria dos coreanos não sabe nadar e, por isso, há muito controlo nas torres de vigia. Há uma linha limite e quando alguém se aproxima, os nadadores-salvadores começam a apitar como se alguém se estivesse a afogar. E às seis da tarde toca uma sirene: a partir dessa hora só os surfistas é que podem estar no mar. Outra coisa diferente é que eles não usam toalha de praia, nem sequer se vende nas lojas. Saem do mar todos molhados, com as bóias e vão assim embora. É engraçado de ver.
- Aprendeste alguma coisa de coreano?
- Não! O único que aprendeu umas coisas de coreano foi o meu filho mais velho, o Christian. Um dia chegou da escola e pediu para brincarmos com ele. Foi para a parede fazer o 1, 2, 3 macaquinho de chinês e começou a cantar a música que ouvimos no Squid Game. É claro que ele nunca viu a série, mas os miúdos brincam mesmo àquilo na escola. No nosso dia a dia, a língua acaba por ser uma barreira, porque as pessoas não falam inglês. A maioria porque não sabe e os poucos que sabem têm vergonha. São muito tímidos e têm medo de errar.
- A eletrónica domina o quotidiano dos sul-coreanos. Eles já têm micro-ondas que leem código de barras que vêm nos alimentos. Lembras-te de mais exemplos?
- Não existem chaves de casa, é tudo eletrónico. Quando sais, trancas a porta com um código e é a mesma coisa para entrar. Vou dar outro exemplo: nós vivíamos num condomínio em que o Christian - que tem cinco anos - ia brincar com os amigos todos os dias para o parque infantil. A partir do ecrã que tínhamos na cozinha, conseguíamos vê-lo. Dava para escolher a câmara do sítio onde ele estava e podíamos vigiá-lo a partir de casa. Mas é claro que só o deixávamos ir porque o país é muito seguro. Para teres ideia do nível de segurança: quando vais a um café ou restaurante, chegas e paras o carro à porta. Entretanto, vem um senhor que trabalha lá e vai estacionar o carro. Não ficas com ticket nem comprovativo. Quando voltas ao parque de estacionamento, a chave está na ignição e o carro está aberto. E não há seguranças a vigiar os carros, não é preciso. Ninguém invade o espaço do outro, é uma questão cultural. Eu e a Filipa estamos sempre a dizer que toda a gente deveria ter a oportunidade de conhecer a Coreia do Sul, porque é uma lição de vida: as pessoas são realmente livres. E estou a lembrar-me de outra curiosidade…
- Podes contar.
- Sabes que eles se tratam por irmão? Imagina que um sul-coreano te conhece agora… Ele nunca vai perguntar o teu nome, aliás ninguém pergunta o nome às pessoas. Vai perguntar que idade tens, porque é uma questão de hierarquia e de respeito. E se não te conhecem de lado nenhum, vão chamar-te prima. Quando há alguma confiança é que te chamam irmão ou irmã. É muito engraçado. As pessoas são mais reservadas do que nós, mas são mais ligadas e ajudam-se muito. Vivem como numa família ou comunidade.
- Os carros são maioritariamente elétricos e de origem asiática, certo?
- Sim! A maioria das marcas são asiáticas, vê-se menos BMW ou Mercedes e Audi é mesmo muito raro. Enquanto em Portugal as marcas Hyundai e Kia são carros banais, lá têm modelos de luxo que não são comercializados na Europa. Têm carros muito bonitos que eu gostaria de comprar se existissem na Europa.
- Qual era o teu carro lá?
- Um Hyundai Grandeur.
- Há bocado falavas no Squid Game que é uma metáfora das desigualdades sociais da Coreia. Apercebeste-te dessa realidade?
- Honestamente, não. Nem da pobreza nem da riqueza. Quando fomos à embaixada portuguesa que fica em Seul, ficámos num hotel de luxo - o Grand Hyatt - e vimos pessoas na receção de pijama, robe e chinelos de quarto. Vês carros de luxo a chegar, mas não consegues perceber se a pessoa que sai do carro é afortunada ou não. No dia a dia é difícil perceber a diferença social, porque as pessoas ricas não são de ostentar. A cidade está cheia de prédios, uns mais modernos do que outros, mas não vês edifícios que digas que estão a cair de podre. Pelo menos eu não vi.
- Foste formado na academia de Alcochete. Como é que tens visto este Sporting que tem dado cartas tanto no nosso campeonato, como na Liga dos Campeões?
- Tenho um carinho muito grande pelo Sporting, porque passei lá muitos anos da minha vida e gosto de ir acompanhando. Na Coreia é que foi mais difícil por causa da diferença horária. Estou muito contente pelo sucesso da equipa que continua a surpreender, graças ao trabalho excelente do Rúben Amorim e do próprio presidente. Toda a gente tem de dar o braço a torcer, porque quando o Rúben foi contratado, 99 por cento das pessoas torceu o nariz. O que é certo é que o trabalho está à vista e fico feliz por isso.
- Antes de terminar: como é que foram os seis meses na Grécia com a camisola do Volos, a experiência anterior à da Coreia do Sul?
- A minha ida para o Volos vem no contexto da crise financeira do Málaga na época passada. Eles despediram oito ou nove jogadores para reduzir a massa salarial e eu fui um deles. Tive de arranjar uma solução fora de horas, porque rescindi o contrato em outubro [2020] e a maioria dos plantéis já estavam fechados - e assinei em novembro pelo Volos. Não gostei do clube, porque tem uma estrutura amadora, não posso considerar profissional. Mas valeu a pena pela parte social, gostei muito de viver na Grécia. Em termos desportivos, tanto a experiência no Volos como no Busan Ipark ficaram um pouco aquém se comparar com os anos no Boavista e no Málaga, onde estive mais tempo e houve continuidade. Ficar seis meses num clube dificulta a adaptação. Só temos 14 ou 15 jogos e, se houver uma pequena lesão, perdemos logo 2 ou 3, ou seja, não dá para ter a continuidade que se pretende.
- Se tivesses oportunidade de repetir um jogo, qual escolhias?
- O jogo que me vem à cabeça é o Boavista-Benfica, em que ganhámos 2-1, na época do Jorge Simão. Lembro-me que o Christian era pequenito e passou a semana toda a dizer ‘golo, golo papá’ e a verdade é que no fim de semana eu marquei.