O relato de horror de Josué da sua detenção em Alkmaar
Josué agradece aos adeptos do Legia (Foto: Newspix/IMAGO)
Foto: IMAGO

O relato de horror de Josué da sua detenção em Alkmaar

INTERNACIONAL11.10.202322:23

Médio português conta tudo sobre o que se passou nos Países Baixos em jogo da Liga Conferência

Josué falou pela primeira vez, em entrevista ao jornal WP SportoweFakty, sobre a sua detenção pela polícia neerlandesa na sequência de incidentes no AZ Alkmaar-Légia Varsóvia, na Liga Conferência. O jogador português foi libertado no dia seguinte, mas garante que o episódio ainda não lhe saiu da cabeça.

«Foi uma noite terrível. Nunca vivi nada tão mau, tão injusto. E, acreditem, já passei por muita coisa na minha vida. Não desejaria aquelas horas, as incertezas e os medos que me acompanharam então nem ao meu pior inimigo. Estou fora da prisão, mas levarei algum tempo para me recuperar mentalmente. Sei que tenho de conviver com isso, mas por outro lado gostaria de me livrar dessa imagem, assim como de todas as coisas que vestia na altura», comentou o médio português.

Uma das formas de lidar com a situação foi livrar-se de tudo o que vestia, explica: «Quando me prenderam, tive de devolver os brincos pretos que usava e os sapatos que calçava. Nunca mais vou usar aqueles brincos, não há hipótese. E os sapatos foram imediatamente para o lixo, tal como a roupa que vestia. Disse ao Sebastian, o nosso técnico de equipamentos, para se livrar de tudo. No entanto, podem-se deitar coisas fora, mas não é fácil tirá-las da cabeça. Porque me afetou muito, não só a mim, mas à minha família. Como disse, tenho de conviver com isso, mas não quero que minha filha viva com isso, pois ela teve de responder às perguntas de outras crianças na escola sobre o pai, que estava preso.»

Josué não tem explicação ainda para o que lhe aconteceu nos Países Baixos: «Continuo a não entender nada. Penso muito nisso e ainda não consigo entender. Afinal, perdemos o jogo. Se fosse o contrário, poderíamos pensar que os irritámos, os deixámos mais nervosos, embora obviamente não fosse justificação para o que aconteceu. No entanto, não consigo compreender como, numa competição internacional, se receba tão mal outro clube e os seus convidados.»

Estou fora da prisão, mas vou levar algum tempo a recuperar mentalmente

Tudo se precipita à saída do estádio e começa com um portão que está fechado. «Não houve sinais de problemas logo após a partida. Conversei com o meu amigo do Alkmaar, o Bruno Martins Indi [antigo jogador do FC Porto] e estava tudo normal. Fui tomar banho e, quando saí, foi aí que tudo começou. Depois da partida, tomámos banho. Metade da equipe foi mais rápida, outros mais devagar, como é normal. E outros ainda deram entrevistas a um repórter da UEFA. Muitos tomaram banho e foram para o ônibus. Lembro que estávamos juntos eu, Youri, Gil, o treinador, Wszolek e o Slisz. Os dois últimos deram essas entrevistas obrigatórias. Quando voltaram, disse ao Pawel: 'Vem rápido, perdemos o encontro, precisamos chegar ao hotel o mais rápido possível.' Respondeu que ainda precisava fazer gelo. Saí. Havia apenas dois seguranças no portão, homem e mulher. A saída ficava perto do autocarro. A literalmente dois passos. Saía-se do portão com o pé direito e entrava-se no autocarro com o esquerdo. Dois metros. Não mais. O segurança então disse-me: 'O portão está fechado, ordem da polícia.' Esperámos. Chegaram depois o técnico, o diretor desportivo e o presidente. O treinador perguntou porque não podíamos sair e o segurança disse: 'Quanto pagas para ir embora?' E começa a rir-se. O treinador ficou surpreendido e, por sua vez, atirou: 'Isso é engraçado.' O segurança responde que está a brincar e repete o que nos tinha dito já: 'Portão fechado, ordem policial.' Nesse momento, chegaram o Jacek Zielinski, o motorista, e Sebastian, o técnico de equipamentos, com todas as malas. O motorista abre o portão e nada acontece. Então saímos todos. Mas Pawel e Bartek ainda estavam lá dentro, eram os últimos. Um momento depois, Sebastian voltou para carregar o resto do equipamento. Mas já estavam 4 ou 5 seguranças no portão. Por que apareceram mais? Num minuto, duas pessoas, um homem e uma mulher, transformam-se em 4 ou 5 e bem grandes. Sebastian queria passar o portão e eu já estava sentado no autocarro. Não o queriam abrir. Então saí e perguntei o que estava a acontecer. 'Seba' respondeu que não queriam deixá-lo entrar. Um momento depois, abriram o portão e começaram a empurrar Sebastian para fora. É assim que se aprende rapidamente uma língua estrangeira! Ao verem o que estava a acontecer, os jogadores saíram do veículo porque começaram a atacar jogadores. A afastá-los. Aí apareceu um segurançazinho e começou a empurrar nosso treinador. Já estávamos a um passo do autocarro outra vez, mas ao vermos o que estava a acontecer com o técnico Kosta, voltámos.»

O relato impressionante continua: «Não voltámos para procurar problemas, apenas para verificarmos o que acontecia. Houve algumas picardias, algumas lutas e aproximámo-nos do autocarro novamente. Então, olhei para a esquerda e vi um grupo a chegar, todos de preto e, aparentemente, a tirarem algo dos cintos. Pensámos que eram os ultras de Alkmaar. Mas era a polícia, à paisana. Alguns tinham lenços a cobrir-lhes o rosto. Voltámos ao autocarro, mas já havia muitos polícias à volta. E então o presidente Mioduski tentou explicar-lhes a situação. Contou-lhes quem era e enfatizou que não gostava da forma como estávamos a ser tratados. E quando pegou no telefone para registar o que acontecia, tiraram-lho e começaram a empurrá-lo. Estava novamente no autocarro, sentado perto de dois jornalistas polacos. Surgiu o caos. Os jogadores registavam em vídeo o que estava a acontecer, outros entraram no veículo. Demorou alguns minutos. E o que acontece a seguir? Estou sentado e a minha esposa liga-me. Conto-lhe o que está a acontecer e ela diz para termos cuidado para que ninguém se magoe. Combinámos conversar com calma quando chegásse ao hotel, mas nunca lá cheguei. O treinador chamou-me, como capitão, à frente do autocarro. Contou-me que a polícia tinha um suspeito já que, aparentemente, um dos seguranças tinha ficado ferido. E esse suspeito é Rasha Pankov. A polícia queria que ele passasse a noite na esquadra. Digo ao treinador que se Rasha for sozinho pode magoar-se, mas ele diz que não há negociações possíveis. Passam-se 15 minutos. O treinador fala com a polícia, fala com o Rasha e ele diz 'OK'. Os policiais já tinham dito que, se não saísse, entrariam. E isso seria um massacre. Não digo que nos matassem, mas seria feio. Então o Rasha diz 'Ok, estou a ir'. E é quando o polícia diz que, afinal, são dois suspeitos e o segundo usa brincos pretos. Era eu. Digo ao treinador: 'Tudo bem, vamos.'»

«Torceram-me os braços e levaram-me como se fosse um assassino. Rasha vem atrás. Vejo um míudo do Legia a filmar e digo-lhe para tirar-me o telemóvel do bolso e ligar para a minha mulher, mas não o deixaram. Empurraram-me depois para dentro de um carro da polícia, nunca mais vi o Rasha até tudo ter passado. Não matámos ninguém, não roubámos nenhum banco, não fizemos nada de errado. Levaram-me porque tinha brincos pretos. Tiraram-me tudo, inclusive os sapatos, deram-me outros de substituição. Quando a porta se abriu, o cheiro não era agradável. Podem imaginar o fedor a urina. Acabei numa pequena cela. Nunca me acusaram de nada, nem antes nem depois. Sabia que se não me soltassem na sexta iria ficar ali o fim de semana, porque estaria tudo fechado. Saí às 15h50 de sexta-feira. Deram-me pão, mas não quis. Fiquei meio dia sem comer nada. Não dormi, não conseguia. Queria lavar-me, mas era à vista de todos. Fui ouvido de manhã, mas um dos polícias não sabia o que lá fazia e dizia que ia encaminhar a minha declaração aos superiores. Ele achava que ia ser libertado, mas não sabia quanto tempo iria demorar. Disseram que não podia ficar ali, que tinha de voltar para o centro de detenção. Regressei à mesma cela. Tive um ataque de pânico, comecei a tremer por todos os lados, a pensar que iria continuar ali. O Konrad, advogado do clube, apareceu finalmente. Disse-lhe que não bati em ninguém. E, como sou baixo, não vi nada do que aconteceu. Afinal, até o Primeiro-Ministro teve de intervir», continuou Josué.

O antigo jogador de FC Porto e Paços de Ferreira, entre outros, conta ainda uma situação no mínimo estranho. «A questão do telemóvel também é interessante. Estava 100 por cento carregado depois do jogo e quando mo devolveram no dia seguinte a bateria estava descarregada. Algo deve ter acontecido. Durante a chamada, a minha esposa chorou durante toda a conversa. Não teve nenhuma informação de mim durante horas. A minha filha não foi à escola. A minha mulher ligou para o mundo inteiro. Para o Legia, para os meus empresários, a embaixada portuguesa... tentou perceber o que estava a acontecer. A minha filha tem 11 anos e acesso à Internet, viu as fotos. Viu fotos no TikTok com a legenda 'Josué na prisão'. Quando desembarquei no aeroporto e vi a minha esposa e a minha filha... as emoções foram grandes, mas não gosto de chorar na frente da família. Mesmo assim, tudo fervia dentro de mim. Não consigo imaginar algo semelhante a acontecer comigo novamente. Tive jogos muito disputados em Portugal e na Turquia, mas alguma vez se viu tratarem o presidente de um clube dessa forma? Não, nunca. Foi um choque para mim. No entanto, ele próprio se comportou com grande dignidade. Esforçou-se para esclarecer o assunto e admirei a sua calma. Nem todos permaneceriam calmos quando atacados de forma tão agressiva.»

O médio de 33 anos mantém a ideia de inocência em todo o incidente. E não só dele, mas também dos seus colegas na equipa de Varsóvia. «Os holandeses culpam o Legia, mas não é culpa do Legia. Se fosse culpa do Legia, eu dizia que era culpa do Legia. Na verdade, só mais tarde comecei a perceber que os nossos adeptos tivera, de levantar os bilhetes em Haia e que a polícia andava a arrastar polacos para fora dos restaurantes da cidade. Não é culpa do Legia. Não é futebol, é um problema maior. Foi discriminação contra o clube, os seus adeptos e o povo polaco. Gostaria de lembrar que aconteceu no clube onde houve pancadaria durante a partida com o West Ham. Todo a gente sabe o que aconteceu então. Significa que estão a fazer ali algo errado. A culpa é deles, mas não o querem aceitar. O Legia vai unir-se ainda mais. O clube, a equipa, os adeptos e a cidade mostraram união. É natural que quando algo mau acontece, uma determinada comunidade se una. No resto, sou eu quem tem de lidar com isso na minha cabeça. Porque não se pode jogar bom futebol sem a cabeça limpa. Vou dar um exemplo: estou a conversar consigo na sede do clube. Há paredes brancas à nossa volta. E no centro de detenção eram verdes e amarelas. Agora mesmo vejo essas cores. Não é fácil superar algo assim. Mais uma vez: não desejaria tal provação ao meu pior inimigo.»