A BOLA NO EURO 2024 O primeiro campeão alemão guarda saudades do Benfica
A BOLA visitou as instalações do histórico Lokomotive Leipzig, fundado em novembro de 1893. Venceu o campeonato alemão em 1903, ainda como VFB Leipzig. Foi ajudado por Lothar Matthaus, mas está agora na quarta divisão alemã.
LEIPZIG — Matthias Loffler é apaixonado por futebol. Durante as férias, que motivaram o adiamento do encontro com a equipa de reportagem de A BOLA, andou a ver jogos em Portugal. Do Sporting, da equipa feminina do Benfica, do Estrela da Amadora e até do Atlético CP, na Liga 3. Ficou encantado com o Estádio da Tapadinha, mas agora recebe-nos no Estádio Bruno Plache, a casa do seu Lokomotive Leipzig.
Voluntário do clube, mas também membro do Conselho de Supervisão, faz questão de começar a visita guiada com um presente, um livro do qual é co-autor, dedicado ao 125.º aniversário daquele que foi o primeiro campeão alemão, ainda como VFB Leipzig, com emblema zul e branco, presente logo na entrada principal, ao lado do atual, azul e amarelo.
«Fomos formados em 1893. Tivemos nomes diferentes, é complicado, mas sucedeu com muitos outros clubes, especialmente na Alemanha de Leste. Tivemos duas transformações: a II Guerra Mundial e depois, a forma como os soviéticos mudaram o sistema desportivo. A palavra Lokomotive só apareceu em 1966, e antes tivemos outros nomes, mas fomos o primeiro campeão alemão, em 1903, como VFB Leipzig. Ganhámos mais duas vezes, foram três títulos. Fomos aquilo que é o Bayern de Munique, hoje em dia», diz Matthias, que destaca ainda a conquista da Taça da Alemanha, em 1936, frente ao Schalke.
Acompanhado por Thomas Franke, que também escreveu o livro oferecido a A BOLA, Matthias recorda os primeiros anos de glória do clube e depois contextualiza a mudança do nome, que explica a locomotiva estacionada à entrada do estádio: «O sistema desportivo soviético estava sempre associado à classe trabalhadora ou a indústrias detidas pelo Estado. Hoje em dia diríamos que é um patrocinador, mas não era, na altura. Neste caso falamos da companhia ferroviária da RDA. Por isso puseram o nome de Lokomotive. O Dínamo de Berlim e o Dínamo de Dresden estavam associados à polícia, ou à polícia secreta, e o nome Vorwarts estava associado ao exército. Oficialmente os jogadores não eram profissionais, tinham empregos, aos quais nunca iam.»
O Lok avançou a todo o vapor pela Europa do futebol. Em 1966 ganhou a Taça Intertoto, frente ao Norrkopping, da Suécia. «Infelizmente era o quarto troféu europeu, não o mais importante, mas fomos o primeiro clube da RDA a ganhar um troféu internacional. Houve aqui invasão de campo e estava toda a gente feliz. A glória internacional já cá andava», diz Matthias.
No ano seguinte eliminaram o Benfica nos oitavos de final da Taça das Cidades com Feira (ver texto abaixo), em 1973/74 só caíram nas meias-finais da Taça UEFA, frente ao Tottenham, e em 1986/87 o emblema de Leipzig disputou mesmo a final da Taça dos Vencedores das Taças, no Estádio Olímpico de Atenas, frente ao Ajax de Johan Cruyff. «O problema foi termos defrontado a melhor equipa do momento. O golo foi do Marco van Basten. Um jovem Dennis Bergkamp entrou depois, com 17 anos. Era uma equipa incrível, e só perdemos 1-0. Mas perdemos. Esses foram os nossos dias de glória», acrescenta Matthias, com o tom nostálgico, triste até, de quem sabe que esse período não foi vivido na plenitude. «Essa final foi a cereja no topo do bolo, mesmo sendo a Taça das Taças. Mas, por outro lado, não tínhamos adeptos lá. Foi só um avião e um comboio. Talvez mil pessoas, devido às restrições entre a Alemanha de Leste e o mundo ocidental. Os adeptos do Lok nunca tiveram oportunidade de usufruir do futebol europeu, até aos anos 80, e depois disso não voltámos a qualificar-nos», lamenta.
VFB voltou para falir
Esses tempos parecem agora bastante distantes. Após a queda do Muro de Berlim o clube até recuperou o nome antigo, VFB Leipzig, mas o período pós-reunificação foi financeiramente complicado para a Alemanha de Leste, também no futebol. «Não é como se más pessoas da Alemanha Ocidental tivessem vindo destruir tudo, como parece indicar a narrativa, por vezes. Não é tudo verdade, só parcialmente. Muitas pessoas aqui não sabiam o que fazer, havia muitos esquemas, e muitos clubes do Leste tiveram problemas financeiros», resume Matthias.
A última presença entre a elite do futebol germânico remete para 1993/94. Dez anos depois o VFB Leipzig foi declarado falido, mas paralelamente já estava a ser recuperado o Lokomotive Leipzig, posteriormente validado como sucessor histórico do primeiro campeão nacional.
O Lok teve de descer ao 11.º nível da pirâmide do futebol alemão, mas nunca deixou de ter apoio. «Nesse primeiro ano ganhávamos 10 ou 15 a 0, e tínhamos três ou quatro mil pessoas no estádio. Até o Lothar Matthaus veio aqui fazer um jogo oficial, da Taça regional. Jogou 70 minutos por nós. Fizemos um encontro do campeonato no novo estádio, o Zentralstadion, que está a ser utilizado para o Europeu, e tivemos mais de 12 mil pessoas. Foi o recorde mundial de assistência na liga mais baixa de um país. Foi um período louco», recorda Matthias, sentado na bancada central do Estádio Bruno Plache, que agora acolhe jogos do quarto escalão.
«Alguns dizem que é o mais antigo estádio com uma bancada principal de madeira ainda utilizado para jogos de futebol. Não sei se isso é verdade, mas é, certamente, um dos mais antigos. O estádio foi construído em 1922, e desde 1932 que esta bancada é assim, como agora», conta o anfitrião de A BOLA, sempre auxiliado pelo amigo Thomas Franke relativamente ao arquivo histórico.
«Muitos jovens da minha geração, e de outras gerações anteriores, não tiveram outra hipótese de escolha. O meu pai trouxe-me a este clube. Eu decidi, de alguma forma, mas fui ajudado a conhecer este clube», diz Matthias, enquanto alguns jovens limpam a bancada de peão, já a preparar a nova temporada da equipa de Probstheida, a sudeste de Leipzig.
«Todos os adeptos dizem isso, mas acho que este clube é, de facto, muito especial», acrescenta, sem esconder dúvidas quanto à ambição deste vizinho do RB Leipzig. «Este estádio, falando romanticamente, é muito bonito, mas em termos profissionais não é muito atual. Jogámos a segunda divisão aqui até 1998, e já não seria permitido jogar agora. Acho que nem o terceiro escalão, pois teríamos de fazer tanta coisa… instalar um aquecimento por baixo do terreno de jogo, que não temos, e custaria milhões. Claro que, como adepto de futebol, gostaria de jogar ao mais alto nível e ganhar os troféus todos, mas tenho de ser realista. Quero jogar nessas Ligas, tendo em conta como o futebol mudou? Já não conhecemos os jogadores, já não apertamos as mãos, o que conta são os seguidores de instagram. Já não é uma questão de paixão», defende.
O dia em que o dr. Drossler tratou de Eusébio
Um dos pontos altos da história do Lokomotive Leipzig é a eliminação do Benfica nos oitavos de final da edição 1966/67 da Taça das Cidades com Feira. A equipa portuguesa tinha sido bicampeã europeia no início da década, mas foi surpreendida então pela equipa germânica, que logo na primeira mão, em casa, venceu por 3-1.
«O jogo foi três dias antes do Natal e o tempo estava horrível. Penso que nenhum jogador português gostou de disputar o jogo, nessa noite. Os nossos jogadores estavam em boa forma, o Lokomotive ganhou e foi incrível. O meu pai ainda fala disso, pois estava lá, quando tinha… oito anos de idade», explica Matthias, que pesquisou sobre essa eliminatória para o livro dos 125 anos do Lok, no qual reservou evidente destaque.
«Os jogos com o Benfica representam um momento que diz muito à geração do meu pai e até mais velhas e mais novas. Parecia impossível que uma equipa da Alemanha de Leste pudesse bater uma equipa que tinha não só Eusébio, como também outros elementos-chave da seleção portuguesa que tinha jogado de forma fantástica no Mundial de Inglaterra», acrescenta o dirigente do emblema de Leipzig sobre «o maior acontecimento de futebol na RDA durante os anos 60». Henning Frazel marcou dois golos nessa primeira mão - já depois de um autogolo de Jacinto Santos e do empate de José Augusto -, mas a grande figura do encontro terá sido outra. «Há muitas histórias à volta desse jogo, mas vale a pena falar do capitão do Lok, Karl Drosser, que se tornou médico depois. Teve um percurso que já não é normal. Deixou de jogar apenas três anos depois, para tornar-se médico e depois professor de biologia. Ele conta sempre que Eusébio, em particular, foi sempre muito gentil e simpático, e mostrou sempre grande desportivismo. Mas nesse primeiro jogo a grande figura foi o dr. Drosser. O Eusébio não saiu da sua sombra. É uma grande história: alguém de uma aldeia no meio da região da Turíngia, que veio para Leipzig jogar, e teve uma noite em que foi melhor do que Eusébio, em que o travou», relata Matthias.
Mais de dois meses depois o Lokomotive Leipzig foi à Luz, e até foi derrotado, com dois golos de Eusébio, mas Henning Frazel voltou a marcar ao Benfica, já na parte final do encontro, e confirmou o apuramento germânico. Nos quartos de final o Lokomotive foi eliminado pelo Kilmarnock. «O primeiro grande momento da nossa história europeia é a eliminatória do Benfica. Foi uma grande ocasião, ninguém quis saber que a equipa tivesse sido eliminada na ronda seguinte, por uma equipa escocesa, pois já tinha acontecido a eliminatória com o Benfica», diz Matthias, 57 anos depois.
Chemie é o grande rival
Afastado da elite do futebol alemão, onde está o vizinho RB Leipzig, com o financiamento da Red Bull, o Lokomotive tem como grande rival o Chemie, outra equipa tradicional da cidade, que deve o nome a uma ligação à indústria química. Rivalidade que se tornou intensa a partir de 1964, ano em que o vizinho da zona de Leutzch, conquistou o título da RDA. «A versão oficial é que era preciso ter uma equipa muito boa em Leipzig e que os melhores jogadores iam para o Lokomotive. E os outros, que não eram tão bons, iam para o ‘Resto de Leipzig’, que venceria o campeonato em 1964, enquanto a melhor equipa da cidade ficou em terceiro. A lenda nasceu e a rivalidade partiu daí. No Chemie dizem que nós tivemos ajuda governamental. Como sempre, a verdade está algures no meio», argumenta Matthias Loffler, dirigente do Lokomotive, que sente que «a rivalidade mudou nos últimos anos». «Não para mim, que cresci e ainda tenho amigos do Chemie, com quem andei na escola. Só durante 90 minutos não gostamos uns dos outros, de resto está tudo OK. Mas algumas pessoas querem que seja questão política, e que um lado seja a extrema esquerda e a outra a extrema direita. É uma parvoíce. Claro que temos pessoas dessas, infelizmente...».