Girona: a explicação racional para o conto de fadas
Líder isolado e melhor ataque da liga espanhola estava há dois anos em lugar de descida à terceira divisão; apoio do City Group, recrutamento inteligente e paciência dão frutos
Há duas temporadas, com 12 jornadas cumpridas e o recém-chegado Míchel no banco, o Girona ocupava o 19.º posto da Segunda División. Apesar de então faltar muito para o final, pairava sobre os blanquivermells o espectro da descida à 1.ª RFEF, o terceiro escalão. Tinham passado quatro anos apenas desde a integração no portfólio do City Football Group, que tem como cabeça de cartaz os ingleses do Manchester City, no seguimento da primeira subida ao escalão principal. Hoje, é o surpreendente líder da La Liga com o mesmo número de jogos realizados e Sheikh Mansour o dono sorridente dos primeiros classificados dos campeonatos espanhol e inglês.
De 2021 até hoje, há então três importantes pontos de contacto. A tal ligação aos Cityzens, o diretor desportivo Quique Cárcel e… Míchel, que se manteve como responsável técnico apesar do arranque mais complicado, uma prova de que a paciência pode, afinal, acabar por ser recompensada. Entretanto, há quem já olhe para o Girona como expoente máximo de um futebol alternativo ou tenha esperança de que se trate um Leicester em construção. Dilly ding, dilly dong! Será mesmo possível?
Possível sim, provável talvez não. Afinal, Real Madrid, Barcelona e Atlético Madrid teriam de fraquejar no mesmo ano e é algo pouco comum. No entanto, são 31 pontos em 36 possíveis – em 2015-16, quando ganhou a Premier League, o Leicester de Claudio Ranieri levava 25 e estava a um ponto do topo – e é o primeiro clube espanhol, desde o Alavés em 2001-02, a liderar com 12 ou mais rondas fechadas sem nunca antes ter sido campeão. A má notícia aqui é que os bascos acabaram em 7.º a 21 pontos do Valência. Todavia, o Girona é ainda um dos cinco emblemas a ganhar 10 dos primeiros 12 encontros de um campeonato, a par de Real, Barcelona, Atlético e Betis, e apresenta-se ainda como melhor ataque, com 29 golos marcados. O arranque histórico já não foge.
Se o título de campeão, para quem montou um plantel a pensar em garantir cedo a permanência, será apenas ilusión, as expetativas de uma qualificação para a Liga dos Campeões aumentam exponencialmente e, em Espanha, já se escrutina o regulamento da UEFA para se perceber se seria possível a Manchester City e Girona participar na mesma competição. A resposta é sim, já que o grupo a que Mansour preside detém apenas 47% do clube espanhol, embora com condições: dirigentes dos catalães com ligações ao City Group teriam de suspender funções antes do pedido da licença de participação; e não podem existir colaborações, acordos técnicos, comerciais, transferências de jogadores e até utilização de bases de dados conjuntas entre o verão de 2024 e setembro de 2025. Ou seja, tem de ficar provado que ninguém do City Football Group toma decisões em relação a ambos os emblemas de forma conjunta e que não existe nenhuma ligação direta em termos de gestão.
Na verdade, a ligação ao grupo não se fica por essa percentagem. Há outros 16% (eram 44,3% em 2017, agora o empresário boliviano Marcelo Claure, um dos fundadores do Inter Miami, atual equipa de Lionel Messi, detém 35%) pertencentes ao Girona Football Group, liderado por Pere Guardiola. Sim, o irmão de Pep, treinador do Manchester City. Não é somar um mais um, mas sim 45 mais 16 e fica claro quem tem a maioria.
O tempo que Míchel sempre precisou
Durante anos, Míchel não era visto como suficientemente bom para a La Liga. Campeão na Segunda ao comando de Huesca e Rayo Vallecano, foi das duas vezes despedido no ano seguinte. Não teve tempo para criar um modelo sustentável perante as novas exigências. Quando garantiu a promoção com o Girona e a tendência, mais uma vez, foi a mesma, recebeu um relatório do City Group para que não alterasse a abordagem. Os dados recolhidos pelos analistas mostravam uma equipa no bom caminho, apesar de os resultados não o espelharem.
A primeira temporada no Girona tinha começado mal, mas o técnico carregou o conjunto ao sexto lugar, apurou-se para os play-off e acabaria promovido. Passou do risco da descida à festa pela subida em poucos meses. Com os catalães a se imiscuírem apenas pela terceira vez entre os grandes, as primeiras semanas voltaram a ser difíceis, porém acabou a lutar pela Europa (acabou em 10.º), e, na sua segunda tentativa, é líder.
O jogador Míchel formou-se no Rayo Vallecano e aí se reformou com recorde de presenças. Quando começou a trabalhar na formação, os madrilenos eram treinados por Paco Jémez, que chegaria a um 8.º lugar recorde com o seu ataque posicional quase obsessivo, que tanto lhe dava grandes exibições no Camp Nou ou no Bernabéu como abria a porta a desgostosas goleadas. O jovem técnico conseguiu ter o distanciamento suficiente para criar o seu próprio processo.
Recrutamento inteligente
A partilha de recursos no scouting com o City Group favorece naturalmente o Girona, e isso notou-se em vários momentos, sobretudo na contratação de dois ucranianos, Viktor Tsygankov e Artem Dovbyk, que permitiu combater com sucesso o envelhecimento de Cristhian Stuani (37 anos) e a saída do melhor marcador Taty Castellanos (13 golos) para a Lazio, depois de ter sido associado ao Benfica.
Dovbyk (ex-Dnipro) é muito agressivo e físico, com boa qualidade técnica e definição na finalização, e enorme mobilidade. Também Tsygankov acrescenta habilidade, capacidade de trabalho, movimentos assertivos e visão para o passe.
Há ainda benefícios ser um clube modesto num portfólio com uma grande referência. Yan Couto (ex-SC Braga) é recurso cedido pelo City Group, tal como Yangel Herrera e Aleix García (e Castellanos) o eram, antes de assinarem em definitivo. Savinho tem estado em destaque depois de ter chegado do Troyes, outra aquisição de Mansour, por empréstimo.
Depois conta também a experiência. O internacional Eric García, que em Camp Nou chamavam Error García, tenta recuperar momentum. E, tal como o ainda ativo culé, Daley Blind é, aos 33 anos, um pilar de qualidade na construção a partir da baliza.
Nos 15 mais utilizados, está clara a política desportiva: Gazzaniga, cedido pelo Fulham, assinou sem custos em final de contrato; Arnau Martínez é canterano; Yan Couto continua emprestado; David López chegou com o passe na mão no verão do ano passado, proveniente do Espanhol; Blind, ex-Bayern, também estava livre; Eric García encontra-se cedido; Miguel Gutiérrez foi negociado na época passada com o Castilla por 4M€; Yangel Herrera passou de emprestado a definitivo por 3M€; Aleix não renovou pelo Eibar e assinou em 2021-22; Iván Martín foi contratado por 2M€ ao Villarreal após empréstimo ao Alavés não ter resultado; recrutou-se Tsygankov em janeiro ao Dínamo Kiev, com custo de 5M€; Savinho joga cedido, após passagem sem sucesso pelo PSV; Dobvyk custou 7,75M€; Stuani vai na 7.ª temporada; Valery Fernández é da casa.
Daley Blind no centro de tudo
O modelo apresenta-se fluido – não é estranho que uma das características mais procuradas nos reforços seja a habilidade – e, sobretudo, não se agarra tempo a mais à bola, seja no inicial 4-1-4-1 ou no mais recente 3-4-3. A progressão é fundamental para Míchel, que não esquece a obsessão que por vezes traía Jémez.
Blind é quem decide, com os seus passes, como se deve avançar. Um playmaker a curta e a longa distância, posicionado agora como terceiro elemento numa linha de 3, com liberdade para subir pela esquerda ou juntar-se ele mesmo, a par de Eric García, a Aleix no miolo, deixando David López para trás.
Tudo parece fazer sentido: centrais laterais com capacidade para passar, transportar e subir para o meio-campo (Eric García e Blind), e outro mais posicional (David López); laterais (Yan Couto ou Arnau Martínez e Miguel Gutiérrez) que tanto atacam pelos flancos como por dentro; extremos dinâmicos (Viktor Tsygankov, à direita, invertido, Savinho à esquerda, capaz de explorar largura e corredor interior); duplo-pivot com Aleix no papel mais posicional que era de Oriol Romeu, recuperado pelo Barcelona, e Yangel Herrera solto); e o possante e técnico Artem Dovkik (seis golos, quatro assistências) no eixo do ataque.
«Nem nos meus sonhos», admitiu Michel quando questionado se esperava o primeiro lugar. A verdade é que já são mais 21 pontos do que tinha na época passada. E parece haver futebol para bem mais.