A BOLA FORA «Assisti ao jogo mais importante da minha carreira pela televisão» - Pedro Santos
Pedro Santos é o primeiro português a conquistar a liga norte-americana de futebol, a MLS. O sonho americano está cumprido. É a camisola 7 do Columbus Crew, um dos fundadores da Liga. No dia da tomada de posse de Joe Biden, contou-me como é que o Covid-19 o impediu de estar no jogo «mais importante da vida». O título é dedicado ao pai, de quem fala com muito amor.
- À hora que te ligo, o que estás a fazer?
- Chegámos agora do IKEA e estou à espera que chegue a hora de almoço para comer. Estamos a remodelar o quarto dos meninos e a aproveitar que ainda estou de férias para tratar disso.
- Tens mais um ano de contrato com o Columbus Crew. A remodelação é sinal de que contas ficar aí mais tempo?
- Sinto-me bem aqui e se tiver oportunidade de ficar, ficarei contente. Não sinto necessidade de mudar, apesar de não saber o que vai acontecer no final da época. Mas a remodelação tem a ver com o facto de os miúdos estarem a dormir no nosso quarto - nas camas deles, mas no nosso quarto. O Martim já é crescido e começa a precisar de ter o espaço dele.
- Aí está tudo aberto?
- Sim, mas com as restrições normais da pandemia: limite de pessoas nas lojas, distanciamento social e obrigação de usar máscara. Pelo que tenho visto, as pessoas têm cumprido.
- Há previsão para o arranque da pré-época das equipas da MLS?
- Num ano normal já estaria a fazer exames médicos e a iniciar a pré-temporada. Há indecisões à volta do Covid-19 e a Liga tem estado em reuniões com o Sindicato dos Jogadores. Tudo isto levou a um atraso de pelo menos quinze dias. Em princípio começo na primeira semana de fevereiro, mas não é certo.
- Falámos (para A BOLA FORA) em setembro de 2017, tinhas acabado de chegar a Ohio e ainda tinhas muitas dúvidas. O que é que mudou na tua vida de lá para cá?
- Vim para a MLS com muitas dúvidas, não conhecia a Liga, não sabia como é que era a vida nos Estados Unidos; hoje estou plenamente satisfeito. Foi a escolha mais acertada, não só em termos profissionais como a nível pessoal - gostamos muito de estar aqui. O meu filho mais velho adaptou-se muito bem à escola americana, fala a língua e está todo contente; o mais novo nasceu aqui, é americano. A nossa vida está estável.
- Lembro-me de dizeres que não estavas muito à vontade com o idioma. Hoje já dás uma entrevista em inglês [risos]?
- Eu até já fiz flash interviews em inglês e já dei algumas entrevistas. Não falo a cem por cento, mas entendo quase tudo e consigo ter uma conversa. Estou mais evoluído [risos].
- E o Martim já te corrige?
- Corrigir não, mas está constantemente a perguntar: «Pai, como é que se diz isto em português?» Às vezes eu não sei do que é que ele está a falar e ele diz-me logo: «Vai ver ao telemóvel».
- Nem sempre as mulheres dos futebolistas acompanham os maridos nas aventuras pelo estrangeiro. É um privilégio teres a família contigo?
- Completamente! E eu penso nisso muitas vezes… Eu não aguentava estar aqui sem a minha família. Para mim, é impensável estar longe dos meus filhos e não acompanhar o crescimento deles. Para um pai, esta é a melhor fase da vida de uma criança. Não há preço que pague não os ver crescer e não os ver a aprender coisas novas todos os dias. A Ana dá-me o suporte que eu preciso para estar bem. Sem ela, a minha cabeça não ia estar a cem por cento e talvez as coisas não me corressem tão bem como tem acontecido até agora.
- Temos vivido tempos muito difíceis por causa da pandemia. Como é que têm lidado com este período com a família do outro lado do Atlântico?
- Tem sido complicado, não somos exceção. Estar com duas crianças fechadas em casa não é fácil, mas o pior é mesmo ter a família muito longe e viver com a preocupação do que é que pode acontecer em Portugal. A distância é muito grande e há sempre o medo de não poder estar presente caso algum familiar precise de nós.
- E foi o vírus que roubou a possibilidade de estares presente no jogo do título e nos festejos…
- Sim, infelizmente testei positivo na semana anterior à final e foi uma desilusão. Foi duro, porque era o jogo mais importante da minha carreira - o dia do verdadeiro título. Na semana anterior tínhamos sido campeões da Conferência Este, título importante, mas que não é o que todas as equipas ambicionam. Eu tive todos os cuidados para que nada me acontecesse para estar disponível e ajudar a equipa - queria muito ter estado presente. Assisti ao jogo mais importante da minha carreira pela televisão e foi difícil. E vi mesmo sozinho. A Ana e os meninos estavam negativos, então eu fiquei isolado no quarto durante dez dias.
- Foram uns festejos atípicos…
- Completamente! Quando era golo eu gritava do quarto, a Ana gritava do lado de fora… E estava a trocar mensagens com os meus amigos de Portugal que também estavam a seguir o jogo.
- Eu vi no Instagram que levaram a Taça até à porta do teu prédio e reparei que estavam de pijama e chinelos. Foi uma surpresa?
- [risos] Foi, aliás nunca imaginei que aparecesse lá a televisão e tudo. Quando acabou o jogo, o treinador ligou-me, disse-me que o título também era meu e que ia tentar levar a taça até minha casa. Mas passaram-se três dias e ninguém me disse nada, até que eu, na brincadeira, comentei com um rapaz da direção: «Vejam lá se trazem a taça que eu quero vê-la.» E nesse dia, o meu colega Artur ligou-me: «Olha, eu vou para o Brasil, anda cá abaixo e traz os meninos para me despedir deles.» Eu desliguei a chamada, pus o robe e a máscara e desci. E quando cheguei vi a taça mesmo em frente à porta do prédio. Foi um momento giro. Descemos todos de pijama, não fazendo ideia que era a taça que estava à minha espera e não o Artur.
- Esta foi a melhor época de sempre?
- Para mim, sim. No ano passado até fiz mais golos, mas senti-me bem, porque consegui ajudar a equipa a ser campeã. Durante dois meses andámos a jogar duas vezes por semana, sempre ao sábado e à quarta-feira e fiz os jogos todos, praticamente os minutos todos. Culminou com a conquista do campeonato, o meu primeiro título, portanto esta é mesmo a minha melhor época.
- Dedicaste este primeiro título ao teu pai que faleceu há pouco mais de um ano. É uma ferida que ainda está aberta?
- [pausa] Sabes, não foi inesperado, porque o meu pai estava com cancro desde 2014. Ele ia tendo algumas recaídas, recuperava, voltava a ficar debilitado, depois houve uma altura em que ele até esteve bem. Tinha consultas regulares, tratamentos de duas em duas semanas e a minha mãe é que o andava a acompanhar. Honestamente, eu não tinha noção que as coisas estavam tão más. Umas semanas antes do meu pai falecer, a minha mãe ligou-me a dizer que tinha ido à consulta e que o médico lhe disse que não era para continuar o tratamento, porque já não havia nada a fazer - o meu pai estava em fase terminal. E aí caiu-me tudo [pausa]. Eu não estava à espera, pensava que o cancro estava controlado, mas afinal não estava. E nesse dia caiu-me mesmo tudo… falei com o meu treinador e expliquei-lhe que tinha mesmo de ir a Portugal, porque a situação era má e podia ser a última oportunidade de ver o meu pai vivo. Ele concordou e fiquei uma semana em Portugal a acompanhar tudo. Quando cheguei, ele estava em casa, mas um dia ficou pior e tive de ir com ele para o hospital. Estava mal e não conseguia comer. Foi aí que falei com o médico que me confirmou que o cancro já estava espalhado pelo corpo e que não havia nada a fazer. Foi duro! Entretanto tive de regressar para o meu trabalho… aliás, o meu pai pedia-me para voltar aos Estados Unidos - dizia que não queria que eu estragasse a minha vida. Viajei no fim dessa semana, depois tive uns dias de folga e fui a Miami com um amigo que, entretanto, tinha vindo de férias. Mal cheguei, a minha mãe telefonou-me a dizer que o meu pai lhe tinha ligado a dizer que seria a última noite, mas para não me dizer, porque não me queria prejudicar. Obviamente a minha mãe não conseguiu esconder e eu apanhei o primeiro voo para Portugal. Soube no avião que o meu pai tinha falecido e a única mágoa que guardo é de não ter chegado a tempo de o ver vivo uma última vez. É a vida.
- Há muito amor nas tuas palavras e na forma como me estás a contar que, desde já, agradeço. De que maneira é que o teu pai foi influente na tua carreira?
- Eu sempre gostei de jogar futebol e o meu pai era o meu fã número um - estava sempre a elogiar-me. Quando começava a falar de mim, a qualquer lado que ia, fazia-me sentir o melhor do mundo. Sempre me incentivou e nunca me deixou sair da linha. Eu consegui chegar até aqui com a ajuda dele e fi-lo não só por mim, mas por saber que o ia deixar muito orgulhoso - ele sempre quis ter um filho jogador de futebol.
- Tens irmãos? Eles não tinham ciúmes desses elogios [risos]?
- Tenho dois irmãos: um irmão mais velho, o Bruno, e uma irmã, a Andreia. Acredito que o meu irmão ficasse um bocado, até porque o meu pai fazia algumas comparações. Ele dizia que o meu irmão tinha mais capacidades de ser jogador do que eu. Eu vi-o jogar e ele tinha todas as condições para ter atingido o máximo no futebol, mas não teve cabeça e perdeu-se. Mas hoje em dia tanto ele como a minha irmã têm muito orgulho em mim, o que me deixa muito feliz, porque sinto que tenho o máximo apoio deles.
- O desporto é uma peça importante da cultura dos Estados Unidos, onde há uma enorme variedade e o futebol não é o mais popular. Passas despercebido na rua?
- Sou uma pessoa completamente normal, com um emprego normal - ando na rua e ninguém me aborda. Aliás, eu nunca dei um autógrafo desde que estou nos Estados Unidos. Eu sou de Lisboa e quando vou a casa há pessoas que me reconhecem e eu gosto disso. Oiço, ‘olha, o Pedro Santos que jogava no Braga’. Aqui praticamente ninguém me conhece. Há uma ou outra pessoa que possa ser adepta do clube e que me chama pelo nome, mas não passa disso. Ah, é verdade: antes de ir de férias, fui lavar o carro e o rapaz conheceu-me e pediu para tirar uma fotografia. Mas foi a única vez [risos].
- Estás com 32 anos e ainda tens mais uns anos de futebol pela frente. Mas já falas - nas entrelinhas - com a tua mulher sobre o pós-carreira?
- Sim, temos falado sobre isso. Ela tem-me apoiado e diz que eu devia continuar ligado ao futebol. Gostava de tirar o curso de treinador para saber como é a experiência. Mas também gosto muito da parte do agenciamento de jogadores. Já meti a cunha à empresa que me representa [risos].
- Continuas a ser a contratação mais cara da história do Columbus Crew ou alguém já roubou esse estatuto?
- Já me roubaram o lugar [risos]. Foi a contratação do início da época passada, é o nosso número dez - o Lucas Zelarayán - que marcou os dois golos da final [o Columbus venceu o Seattle por 3-0].
- Tens acompanhado os jogos em Portugal? Ontem o Sporting bateu o FC Porto para a meia-final da Taça da Liga [a entrevista foi gravada na quarta-feira] e hoje SC Braga e Benfica defrontam-se na segunda meia-final que está marcada pelo Covid-19.
- Tenho acompanhado quase tudo -ainda ontem vi o Sporting-Porto. Tenho pena que seja uma meia-final com estes casos todos de Covid. O Benfica não vai estar na máxima força, mas também sei que eles têm um plantel recheado de qualidade e vai acabar por ser uma meia-final de qualidade, o que é bom para a Liga. Não sei se o campeonato vai parar, mas espero que não. O desporto serve para entreter as pessoas e acaba por ser um escape para quem está fechado em casa.
- Se tivesses oportunidade de repetir um jogo, qual escolhias?
- Neste caso não seria repetir, mas adiar para o poder jogar: o último jogo que deu o título ao Columbus. Já disse ao meu treinador que este ano temos de fazer igual, porque desta vez quero estar no jogo do título.
- Ainda tenho espaço, por isso aproveito para perguntar se notas muita diferença em termos de balneário dos americanos para os portugueses?
- Noto uma grande diferença. Em todos os balneários que passei em Portugal, havia sempre muita brincadeira, um palhaço que andava a fazer partidas, a cortar meias ou a esconder roupa. Todos os dias havia uma coisa diferente. Aqui não há muito isso. Os americanos são simpáticos, mas mais reservados. As brincadeiras acontecem entre os estrangeiros. Por acaso tive um colega de balneário que era igualzinho ao Ukra. Estava sempre na palhaçada e não tinha vergonha de nada. Mas de resto é completamente diferente.
- Nem me estava a lembrar que tinhas jogado com o Ukra, porque ia perguntar-te qual o colega mais cómico com quem jogaste. Sendo assim, não vale escolhê-lo [risos]…
- Sim, jogámos no Rio Ave. Em Braga tínhamos um grupo muito bom com o Rui Fonte, o Wilson, o Tiago Sá, o Artur Jorge, depois veio o Ricardo Horta que também é um palhacinho. Tínhamos um grupo muito unido. Íamos sempre para o jacuzzi depois do treino e ficávamos na palhaçada uns com os outros. Em todas as equipas há um mais engraçado. Quando cheguei cá tinha esse colega que tinha uma costela do Ukra.
«Aqui as mulheres dos jogadores não se juntam»
2017. A maior preocupação do início da aventura americana era a adaptação do filho Martim, agora com seis anos - Vicente nasceu há dois na terra do Tio Sam. Passados três anos e meio, Ana não podia estar mais orgulhosa. «Eu estou neste barco para dar qualidade de vida aos meus filhos, não é para mim. E vê-los tão adaptados a um país que não é deles deixa-me muito orgulhosa. O Martim aprendeu muito rápido inglês, fala muito melhor do que eu e com seis anos diz-me: «Mãe, diz-se assim’. É um excelente aluno e a professora está encantada com o nível dele», conta.
A família portuguesa mora em Downtown, no centro de Columbus. Quando lhe perguntei sobre os tumultos depois das eleições, a mulher do extremo desvalorizou. «Eu acho que a televisão exagera um bocado. Houve de facto alguns protestos, partiram algumas lojas, mas Columbus não foi o centro dos problemas. Nunca me senti insegura, até acho que Ohio é dos estados mais tranquilos», refere.
Ana, natural de Setúbal, falou ainda da solidão que é comum a muitos emigrantes - as mulheres dos futebolistas não são exceção. «A minha vida aqui é muito solitária. Levo os miúdos à escola e venho para casa. Passo dias sem ver ou falar com pessoas sem ser o Pedro ou os miúdos. Aqui, as mulheres dos jogadores não se juntam como acontece em Portugal e sinto falta disso. As americanas constroem família muito novas. É normal ver raparigas com vinte e poucos anos com três ou quatro filhos, o que faz com que vivam muito para a família. Na Roménia, não me senti tão sozinha, porque foi pouco tempo e costumávamos conviver com o Yazalde e a namorada. Aqui não tenho mesmo ninguém. Falo várias vezes por mensagem com a Daniela - mulher do Nani - mas ela está em Orlando e com a pandemia é difícil juntar-nos. Sinto falta de conviver, porque sou muito comunicativa», finaliza.