Argentina: o guarda-redes-presidente Milei e os fumos negros já esquecidos do Monumental
Javier Milei, guarda-redes do Chacarita, em cima à esquerda, é o novo presidente da Argentina (Foto: DR)

Argentina: o guarda-redes-presidente Milei e os fumos negros já esquecidos do Monumental

INTERNACIONAL23.11.202300:55

‘El Loco’, líder da extrema-direita, foi guarda-redes do Chacarita e já na altura tinha a alcunha; quer acabar com o peronismo, o sentimento político mais profundo nas Pampas; país passou por ditaduras sangrentas e conquistou primeiro título mundial sob o controlo da Junta Militar de Jorge Videla, uma época de terror que hoje parece ter sido enterrada definitivamente bem no fundo do subconsciente albiceleste

Don’t cry for me, Argentina! O tema, cantado por Elaine Page na sua interpretação de Evita Perón na peça criada em seu nome (depois de escrito por Andrew Lloyd Webber e Tim Rice, e gravado por Julie Covington em 1976), foi absorvido pelo folclore das Pampas. E não há outro que dê tom mais certo a este artigo.

O carácter emotivo da Primeira Dama, também ela figura central do peronismo ao lado do marido Juán Domingo, que apelava à mobilização em torno de um ideal de maior igualdade entre classes, é retratado na perfeição por Page e por todos os que o interpretaram nos anos seguintes, dos Carpenters a Madonna. 

É esse sentimento, que é de esquerda, mas extravasa qualquer fronteira política, e bebe ainda ideais de centro e de direita, que Javier Milei, o novo presidente argentino a partir de dezembro, quer erradicar. A extrema-direita está agora irremediavelmente de volta ao poder num país que muito sofreu e perdeu com as juntas militares. E o conceito de Estado, como garante o antigo guarda-redes do Chacarita, acabou.

Figuras feitas em fibra de vidro de Che Guevara, Evita Perón e Diego Maradona em varandas do Bairro de La Boca, em Buenos Aires (Foto: Pond5 Images/IMAGO)

A forte ligação ao futebol como propaganda

A Argentina sagra-se campeã do mundo pela primeira vez em 1978. Numa final com a Holanda envolta num mar de papelinhos atirados das bancadas e que será decidida apenas no prolongamento, um detalhe chama a atenção de todos os presentes: a base dos postes das balizas está pintada de negro. Ao sanguinário general Jorge Videla e à sua estrutura de comando o pormenor é explicado como tradição antiga acabada de recuperar pelos funcionários do Monumental. Mais tarde saber-se-á, no entanto, que se tratam de fumos negros, em homenagem aos milhares perseguidos, torturados e mortos pela ditadura. Um protesto silencioso para que o mundo o entendesse.

Final do Mundial 1978, com os postes das balizas do Monumental com «fumos negros» (Foto: IMAGO / Sportfoto Rudel)

O futebol, ainda mais num país empobrecido, vigiado e oprimido, é desde sempre um veículo de propaganda. Não é mais do que o «ópio do povo», como tantos atiraram, deturpando, em seu favor, a expressão que nasce da retórica de Karl Marx sobre religião. A Junta quer vencer e tudo fará para que tal aconteça. Não haja dúvidas disso.

Há relatos de ameaças a jogadores adversários, penáltis controversos, o uso de substâncias proibidas e, claro, o jogo decisivo diante do Peru. Para chegar à final, a Argentina tem de vencer por 4-0 e consegue um 6-0 com «facilidade suspeita», de acordo com alguns comentadores da época. No meio da trama da alegada conspiração está o guarda-redes Ramón Quiroga, nascido em… Rosario. Sim, na Argentina. Há demasiadas teorias e até um clima de intimidação à Holanda no encontro decisivo, porém nada provado.

César Luis Menotti, o selecionador, tem também ele de fazer aprovar as suas ideias, ainda mais por ser conhecido o seu posicionamento político de esquerda, que transporta para a cancha. O rosto do futebol romântico explica com uma inspiração na tradição do futebol argentino o jogo mais tecnicista e ofensivo que Mario Kempes, Osvaldo Ardiles e Leopoldo Luque desenham em campo. Aproveita-se o desconhecimento histórico dos generais. Não era o jogo físico e traiçoeiro que os rivais ideológicos colocavam em campo, que a Junta também apreciava e que ele mesmo chamava de anti-futból. Era arte. 

Felizmente, para ele e para os jogadores, ganhou. Infelizmente para todos, a Junta agradeceu.

Javier Milei a discursar durante a campanha presidencial (Foto: IMAGO / Latin America News Agency)

Milei, fã de… Carlos Bilardo

O segundo título mundial argentino, em 1986, é conquistado de forma bem menos estética e muito mais pragmática. O selecionador é Carlos Bilardo, antigo soldado de Oscar Zubeldía, a master mind de um Estudiantes sempre no limite (ou mesmo fora) da Lei. No México, El Narigón monta uma redoma à volta de Maradona e alcança a felicidade. Já quatro anos depois, a selvajaria que a albiceleste apresenta no jogo decisivo com a Alemanha – com um Diego limitado por uma lesão no joelho – ainda mais se aproxima do vale-tudo que propunha Zubeldía.

Javier Milei confessa-se várias vezes fã de Bilardo, por ser um «estudioso do futebol» e pela importância que dava ao resultado em detrimento do espetáculo, do belo. Nada estranho, se considerarmos o lado mais conservador de ambos. 

O político tem, entretanto, o seu nome gravado numa estrela no Museu do Boca Juniors devido à sua participação no clube enquanto sócio, porém na final de Taça da Libertadores de 2018 torce contra o emblema xeneize em favor do… River Plate. Muda de lado quando Juan Román Riquelme e Fernando Gago são contratados no que considera ser «um ato de populismo». E explica: «Gago era um 5 que não sabia marcar adversários. Isso para mim não faz sentido! Um 5 tem de ser um criminoso!» Torna-se anti-Boca. Quando Gago pendura as botas, deixa de ser anti, passa simplesmente a ser não-Boca.

No entanto, nem por isso Milei se desliga da Bombonera. Não só conta com o apoio de Maurício Macri, antigo presidente do país e do Boca, nas eleições, como promete devolver a ajuda deste no sufrágio de 2 de dezembro na luta pela liderança do gigante de Buenos Aires. Se o seu candidato vencer, terá à sua frente uma forma de voltar a sentir amor pelos emblema xeneize, garante.

Carlos Bilardo ao lado de um Diego Maradona em lágrimas após a final do Mundial de 1990 (Foto: IMAGO / Buzzi)

O Loco vai sempre à baliza

O novo presidente da Argentina é, percebe-se, um pouco louco. Basta recordar os vídeos dos debates com jornalistas e opositores sobre o estado do país. E é essa a palavra com que mais o adjetivam na sua passagem pela baliza do Chacarita, entre os 13 e os 14 anos. 

«Atirava-se para todo o lado, não se importava com nada. Era daqueles tipos fortes, grandes e chamávamos-lhe El Loco Milei. Era um bom guarda-redes», recorda o antigo futebolista Gabriel Bonomi ao Infobae. 

«Quando estava na baliza, transfigurava-se. Vestia a camisola e fazia loucuras na baliza, mergulhava de cabeça, coisas que nos faziam dizer 'este tipo é completamente louco’», acrescenta Perico Pérez, antigo companheiro de equipa.

Eduardo Grecco, ex-treinador do clybe, recorda ainda «uma das melhores fornadas do clube, a geração de 70»  e um «despenteado» crónico, «ainda que um pouco mais ruivo, por força do sol». O seu concorrente era Juan Carlos Docabo, que chegou mais tarde a jogar profissionalmente no Vélez, Estudiantes e Banfield, e mesmo assim levava a melhor. Até uma lesão precipitar o fim da careira.

O regresso da amnésia 

A Argentina já esqueceu os gritos que ecoavam dos centros de detenção, visíveis para quem quisesse vê-los, a poucos quarteirões do Monumental, ao mesmo tempo que caminhava para a conquista da primeira Taça do Mundo. Os fumos negros na base dos postes. Las Madres de la Plaza de Mayo que marchavam todas as quintas-feiras para a Casa Rosada, o Palácio Presidencial, carregadas com cachecóis brancos e fotografias dos filhos desaparecidos. A amnésia voltou.

O país virou profundamente à direita na direção do seu extremo, confiando nas palavras radicais de quem nunca escondeu a sua loucura. E se o futebol foi tantas vezes amigo dos governantes, ainda não foi desta que apoiou o povo que lhe dá força, mesmo com tantos indícios de uma personalidade instável e do exemplo de uma má vizinhança recente a norte, em Brasília, numa das mais importantes decisões da sua história.

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