«A minha mana chama-se Kika Nazareth tal como a minha jogadora favorita»
Ainda há dúvidas sobre o crescimento do futebol feminino em Portugal? A história de como surgiu uma segunda Kika Nazareth; A BOLA promoveu o primeiro encontro entre a jogadora e a menina que lhe herdou o nome
O pequeno Vasco sempre quis ter um irmão. Um rapaz! Tinha o sonho, como tantas crianças, de ter alguém com quem jogar à bola. Alguém a quem passar o gosto pelo futebol, como ele próprio tinha recebido do pai.
Até que, contra todas as expectativas familiares, a mãe engravidou mesmo, quase com 40 anos. Mas de uma menina. E o Vasco queria um irmão! «Chorou durante dois dias.» Não era com uma irmã que ele tinha sonhado.
Para contrariar o desgosto do filho, os pais decidiram dar-lhe a grande responsabilidade: ser ele a escolher o nome da mana que lá vinha.
E desse gesto nasceu mais uma prova – a prova definitiva, talvez – da afirmação do futebol no feminino em Portugal. Uma afirmação em nome próprio.
«Podemos chamar à mana Francisca. E tratamo-la por Kika. A mana pode chamar-se Kika Nazareth?», atirou o irmão, já entusiasmado, e com a certeza: «Tinha de ter alguma coisa a ver com o Benfica!», recorda agora o rapaz de 14 anos.
A sugestão do Vasco foi recebida com perplexidade pela mãe Vera, mas com entusiasmo e cumplicidade pelo pai Nuno. Mas ao mesmo tempo que a mãe achou que os rapazes se esqueceriam da brincadeira, eles fizeram de tudo para a tornar realidade.
Um dia fui à escola do Vasco e uma das funcionárias perguntou-me se eu sempre ia ceder e deixar meter o nome da jogadora do Benfica. Ele já tinha andado a dizer a toda a gente
«Para menina não havia consenso em relação ao nome. Por isso fomos pensando em várias alternativas», contextualiza Nuno Pereira. «Eu gostava da conjugação de Ana Vitória, que também era jogadora do Benfica, mas a mãe disse logo que não porque lhe fazia lembrar a águia…»
«Era o que faltava!», reage Vera enquanto o marido recorda a história.
«Eles assumiram logo que ela se iria chamar Francisca Nazareth, mas achei sempre que eles se esqueceriam. Andámos meses nisto. De fevereiro até agosto. Kika Nazareth para aqui, Kika Nazareth para ali. Um dia fui à escola do Vasco e uma das funcionárias perguntou-me se eu sempre ia ceder e deixar meter o nome da jogadora do Benfica. Ele já tinha andado a dizer a toda a gente», espanta-se a mãe, perante o sorriso malandro de Vasco no outro sofá da sala da família.
Nazareth está com ‘th’! Quem quer saber do apelido?
Nuno Pereira, Vera Lopes, Vasco Pereira e Francisca Nazareth Lopes Pereira recebem a reportagem de A BOLA na mesma sala em que se juntaram no verão para assistir aos jogos da histórica participação da seleção feminina no Mundial que se disputou em julho.
Na altura, ainda a pequena Francisca não tinha nascido, mas já era tema em cada jogo de Portugal. Era um autêntico massacre feito por pai e filho na tentativa de convencer a mãe.
«Veio o Mundial e a Kika fez um grande torneio. Toda a gente falava dela. Depois no segundo jogo até marcou um golo», introduz Nuno, interrompido por Vasco.
«Então, antes do jogo com os EUA, fizemos uma aposta: se a Kika marcasse um golo, se ganhássemos ou se empatássemos, podíamos chamar-lhe Kika Nazareth», recorda.
«Estiveram o jogo todo a chatear-me! Eu cedi porque, na verdade, até achava que era pouco provável os EUA não ganharem a Portugal. E assim podia ser que a história acabasse por ali», acrescenta Vera, sem esconder o sorriso.
Ora, contra as expectativas de Vera, Portugal conseguiu o feito de empatar com a seleção que era bicampeã mundial. E esse empate foi festejado de forma muito especial por pai e filho naquela sala.
Seguia-se uma tarefa tão ou mais difícil: registar a filha como Francisca Nazareth Lopes Pereira. E foi o pai quem assumiu a responsabilidade.
«O pior foi mesmo no registo. Estive tanto tempo com a senhora por causa do «th» de Nazareth! Ela não encontrava o nome nas opções autorizadas. E perguntou-me: ‘mas conhece alguma?’ Eu saquei do telemóvel e mostrei logo… mas ela percebeu que era apelido. Até que encontrou um registo e eu fiquei louco!», lembra sem esconder o orgulho pela missão cumprida.
Um orgulho que até podia ter-se transformado em «quase-vergonha» pelo facto de a filha ter ficado muito perto de ser registada com… o apelido errado.
«Hoje tem piada contar essa história. A senhora do registo estava com um problema nos olhos, tinha de meter umas gotas e quando preencheu tudo pediu-me para ver se estava tudo bem. Eu olhei imediatamente para o Nazareth, para ver se estava mesmo com «th», claro. E com isso nem me apercebi que o apelido, o meu nome, Pereira, estava escrito PERERIA», relata arrancando gargalhadas a todos na sala. «A senhora é que reparou nisso no último momento».
«Uma benfiquista dos 20 costados»
A batalha dura valeu a pena. O Vasco conseguiu cumprir o objetivo e, mais importante do que isso, os pais conseguiram ainda antes de a mana nascer, criar um entusiasmo crescente no irmão mais velho.
«Foi um belo trabalho de equipa», orgulha-se Nuno, enquanto mostra como o Benfica já tem duas Franciscas Nazareth nas fileiras.
Sim, porque a grande paixão de pai e filho é o Benfica. São incontáveis as histórias de família que envolvem o amor ao clube das águias. E claro que a pequena Kika já é sócia do Glorioso.
Mas e então, como vão explicar toda a história do nome quando a pequena quiser saber? O Vasco não hesita.
«Vou dizer-lhe que Kika Nazareth é o nome da minha jogadora favorita. Esperei tanto tempo pelo momento de ter um irmão ou irmã, que quis dar-lhe o nome de alguém de quem gostava muito», atira de imediato o adolescente.
«E não é só pela jogadora que é: parece uma miúda com uma personalidade incrível. E depois ela é uma benfiquista que nem é dos sete costados, é dos 15 ou 20 costados. Tem uma pancada enorme pelo Benfica, e claro que isso também pesou», completa o pai.
E lembram-se da tristeza do Vasco por não poder jogar à bola com uma irmã? Isso já lá vai e a culpa é de Kika Nazareth e das companheiras que mudaram o panorama e alargaram horizontes a milhares de crianças.
«Há dias estava a vir de casa dos meus avós e disse à minha mãe que vou ensinar a mana a jogar futebol. A mãe quer que ela vá para a natação ou vólei. Mas eu vou ensinar-lhe, o que eu sei. Vou ensiná-la no jardim em casa da avó. Esse vai ser o nosso segredo», garante o pequeno Vasco para despedida.
«É mesmo um orgulho terem-lhe dado o meu nome»
«Um dia ainda vou conhecer a Kika Nazareth para lhe dizer que a minha irmã tem o nome dela».
O vaticínio foi lançado por Vasco numa das conversas com o nosso jornal. E nós só antecipámos o inevitável.
Aproveitando o jogo desta terça-feira da Seleção em Leiria, e sendo a família Pereira da Marinha Grande, o encontro das duas Kikas Nazareth aconteceu com o contributo imprescindível da FPF.
E o Vasco nem precisou de dizer nada, a Kika original já sabia da existência da homónima, que agarrou no polegar da jogadora da seleção como se fossem amigas de longa data: «Estão a ver, já não me larga», brincou a atleta que quis depois saber todos os detalhes da história.
Se eu marcar contra a França vou dedicar-lhe o golo a ela!
«O mais importante: vocês gostam mesmo do nome?»
A resposta de pai e filho era fácil de perceber pelo brilho nos olhos, por isso foi a mãe quem assumiu a palavra.
«Eu gosto Francisca, mas sempre disse que não daria esse nome por ser muito comprido. E eles ainda batalharam com o Nazareth e eu achava que era demasiado grande…», justificou, encontrando solidariedade do outro lado: «Era exatamente o que a minha avó dizia, ela não gostava de nomes compridos».
E por entre avisos mais humorados - «se ela for como eu, vai dar-vos trabalho!» - ficou uma mensagem de gratidão e uma promessa!
«Eu nem sei se é um agradecimento, mas só vos quero dizer que é mesmo bom, é um orgulho terem-lhe dado o meu nome. E se eu marcar amanhã [hoje] vou dedicar-lhe o golo com este gesto [faz o embalo celebrizado por Bebeto no Mundial de 1994]».
Está prometido!
Quando Marcel Matz foi cúmplice de uma surpresa
Benfica, Benfica e Benfica. Não é só a história da família Pereira que está recheada de referências aos encarnados. A casa também. E a última aquisição teve uma ajuda especial. Poucos meses depois de Vasco ter trocado o futebol pelo voleibol, o pai quis oferecer-lhe uma camisola assinada pela equipa do Benfica daquela modalidade. Tentou de várias formas, até que em quase desespero enviou uma mensagem a… Marcel Matz. O próprio treinador das águias. Para espanto de Nuno, além de ter-se prontificado imediatamente para cumprir o desejo do pai, foi ele mesmo comprar a camisola à loja do Benfica e encontrou-se depois com a família Pereira que viajou para Lisboa para fazer a surpresa ao filho, que recebeu a camisola das mãos de Matz.