A homenagem a Eriksson: gente feliz com lágrimas
Os bastidores, a emoção e grande felicidade do treinador sueco; e uma jornada inolvidável para quem nela participou
Há muitos anos, mais de 40, numa viagem de comboio do Benfica para o Porto, fiquei no mesmo privado, que dava para seis passageiros, com o Humberto Coelho, capitão e líder da equipa orientada por Sven Goran Eriksson. Nas mais de três horas do trajeto, Humberto, que tinha o estatuto que tinha, internacional, multicampeão, vedeta no PSG, e integrante da Seleção do Resto do Mundo, disse uma coisa que recordei no dia de quinta-feira, durante os vários passos da homenagem do Benfica a Eriksson: «O melhor que levamos desta vida de profissionais de futebol são as emoções que vivemos, e que não estão ao alcance, com a intensidade com que as sentimos, de qualquer um.»
Matutei naquilo, senti o que adrenalina de entrar num campo com 70 mil adeptos para um jogo decisivo nos fazia, antes, durante e depois da partida, penei na montanha russa de alegrias e tristezas que a vida a jogar um jogo nos traz, e pensei para com os meus botões: «Este gajo não é nada parvo, o que acabou de dizer vai para lá da espuma dos tempos, e chega ao âmago da questão, no fim do dia o que levamos da vida são as sensações e os sentimentos.»
Saudosismo à parte, no futebol do meu tempo, porque as equipas não mudavam de seis em seis meses, criavam-se elos fortes e duradouros entre jogadores e técnicos, que resistiam a tudo. A tudo, a rivalidades, inimizades, amuos, birras, zangas, momentos de alegria, partilha e comunhão, que blindaram gerações. E é por aí que se explica por que, 40 anos depois de Eriksson ter sido bicampeão nacional com o Benfica, na hora em que o clube convidou os seus jogadores dessa altura a associarem-se à homenagem ao treinador sueco, quase todos terem dito presente. Quatro desses compagnons de route de 1982/84 — Bento, Frederico, Chalana e Pietra — já não estão entre nós. Mas dos 21 campeões nacionais de 1982/83, apenas César, no Brasil, Stromberg, na Suécia, Nené por razões de saúde, e José Luís, por razões ponderosas pessoais, estiveram ausentes. Delgado, Veloso, Humberto Coelho, António Bastos Lopes, Álvaro, Carlos Manuel, Shéu, João Alves, Diamantino, Filipovic, Padinha, Carlos Pereira e Alberto Bastos Lopes marcaram presença, honraram o passado, honraram Eriksson, e fizeram questão de se associarem ao arrepiante tributo que o Estádio da Luz prestou ao técnico sueco. E da época seguinte ainda se juntou Michael Manniche, que se deslocou propositadamente da Dinamarca.
Mas da geração que se seguiu, na segunda passagem de Eriksson pelo Benfica, que se sagrou campeã em 1990/91 e foi à final da Champions em 1989/90, marcaram presença Valdo, Paneira, César Brito, Rui Águas, William, Valido, Kenedy, Dias Graça, José Carlos, Paulo Madeira e o fisioterapeuta António Gaspar. Se isto não é sentido de pertença a um grupo, nada o será. Com um denominador comum: Eriksson.
O que a seguir vai ser escrito traduz o que aconteceu, entre as 17 horas e as 22 da última quinta feira, na homenagem a Eriksson vivida por quem teve o privilégio de poder agradecer ao técnico sueco tudo o que fez por cada um. Participante dos factos, na qualidade de ex-jogador de Svenis, não me sentiria à vontade para trazer a público alguns episódios, sem ter o conforto dos líderes do grupo. Falei com Shéu, que não viu nenhum problema, e também com Humberto Coelho, o grande capitão, que me disse: «Escreve à vontade, porque quanto mais pessoas tiverem contacto com o que está a acontecer, melhor. É preciso que saibam o que estes momentos significaram.» Pois, aqui vai.
Eriksson e os olhos que riam
Sven-Goran Eriksson, 76 anos, anunciou ao mundo, há escassos meses, que não deveria ter mais que um ano de vida, consequência de um cancro no pâncreas inoperável. Foi um ato público de uma pessoa extremamente reservada, educada no preconceito de não deixar transparecer emoções. Ainda na Luz, antes da ida até ao hotel onde nos encontrámos com Eriksson, falámos da cara de póquer do sueco, acontecesse o que acontecesse, apenas traído por uma coisa, só percetível para quem o conhecia bem. Nos momentos de irritação, apesar do fácies se manter inalterado, começava a corar, a começar no queixo e a acabar na testa, sinal de que estava a ferver por dentro, ao mesmo tempo que procurava manter o ar mais cool possível, por fora.
Perante a brutalidade dos factos, Eriksson saiu a terreiro e decidiu aproveitar o tempo que lhe restava para regressar a locais onde foi feliz. E uma coisa garanto: Sven-Goran Eriksson, na última quinta-feira, apesar de tudo, apesar da sentença que lhe pesa sobre a cabeça, viveu um dia de felicidade, uma felicidade transbordante, despida de pruridos emocionais, com os olhos a rirem-se para quem o indicou como símbolo inspirador e fator de mudança de vida. Vindo do frio nórdico, Eriksson derreteu-se perante a torrente de afetos de que foi alvo, e bem depois do Benfica-Marselha ter terminado continuou no espaço VIP do camarote presidencial, sem nenhuma pressa de ir para o hotel, disponível para fotos e para mais um e outro dedo de conversa.
Antes de entrar na cronologia dos factos, será bom que o leitor fique com esta imagem, que traduz com fidelidade absoluta tudo o que se passou: Eriksson transbordou de felicidade, e a felicidade de quem pôde estar com ele não foi menor. Desta conjugação, resultou um ambiente caloroso, de que, para já, destapo um a ponta: Svenis foi apanhado de surpresa pela entrada de mais de vinte dos seus ex-jogadores, todos com a camisola do Benfica vestida, na sala do hotel Corinthia, em Sete Rios, onde estava instalado. Um a um cumprimentou-os, alguns reconheceu-os — décadas se passaram — com a ajuda de Toni, e, de repente, sem que houvesse qualquer combinação prévia, os seus antigos pupilos tributaram-lhe uma salva de palmas, espontânea, que se prolongou por longos minutos, até levar Eriksson às lágrimas.
Eriksson e não só. Foi um momento de ternura, de partilha e comunhão, que apagou os medos que assaltavam alguns jogadores quanto ao estado de alma do ex-técnico. Sven-Goran Eriksson, que sabia ir ser alvo de uma homenagem pública no Estádio da Luz, exibiu a sua faceta mais latina perante os aplausos de quem com ele conviveu vários anos.
A homenagem vivida por dentro
Na última segunda-feira o Benfica convidou os jogadores que trabalharam com Eriksson, nas duas passagens pela Luz, a associarem-se à homenagem que o clube ia prestar-lhe por ocasião do jogo com o Marselha, dando alguns detalhes da operação e referindo o Parque 2 do estádio, junto à porta 1, como ponto de encontro e saída. A partir das 17 horas de quinta-feira, um a um, os ex-pupilos de Eriksson foram chegando, com alguns reencontros a sucederem entre quem não se via há décadas. Eram duas gerações de futebolistas, que representavam três títulos nacionais e duas presenças em finais europeias, que tinham em António Veloso o único a conquistar os três campeonatos com Eriksson.
Ainda na Luz, Paulo Madeira fez uma vídeochamada com Silvino Louro, que estava em Marrocos, que teve oportunidade de saudar, cara na cara, os companheiros e desejar-lhes uma boa jornada, apesar da incógnita quanto ao estado de alma de Eriksson, e à forma como cada um ia reagir ao reencontro com o mister. Durante a viagem do estádio até ao hotel Corinthia, o programa foi apresentado por quem organizou o evento: foram distribuídas camisolas a todos os ex-jogadores, que dentro do autocarro as vestiram. No hotel, onde se reuniu ao grupo Michael Manniche, foi-nos dito que Eriksson, que estava a falar, no último piso, para a BTV, não fazia ideia de que iríamos visitá-lo. Assim, em silêncio, como em qualquer boa operação furtiva, a comitiva vinda da Luz subiu nos elevadores e foi encaminhada, sempre de sussurro em sussurro, para uma sala, onde aguardou pelo momento do reencontro.
Com Toni — que na véspera tinha jantado com Eriksson e mantém com o técnico sueco uma relação quase familiar — e Humberto Coelho à frente, entrámos na sala e só ver a cara de espanto, e ao mesmo tempo de satisfação, de Sven-Goran Eriksson valeu o dia. Um a um os ex-jogadores cumprimentaram o mister, que para cada um teve uma palavra especial: por exemplo, não reconheceu à primeira César Brito — que vive no Barco, perto da Covilhã, e apesar de ter mais quilos e menos cabelo, mantém um invejável ar de saúde! — mas rapidamente chegou lá e disse: «César, aqueles dez minutos nas Antas valeram o Campeonato!»
Depois, o que aconteceu, por nada ter sido combinado previamente, foi mágico: de repente, todos os presentes tributaram uma muito audível e prolongada salva de palmas a Eriksson que, com a lágrimas a saltarem-lhe dos olhos, agradeceu de mão cruzadas sobre o coração. Qual cara de póquer, qual quê! Svenis deu-se às emoções, recebeu e partilhou, e foi de sorriso rasgado que aceitou de Toni a braçadeira de treinador, que orgulhosamente colocou no antebraço esquerdo. Depois foi Humberto a falar em nome do grupo, enfatizando a importância que Eriksson tivera na vida de cada um de nós, sendo a razão profunda da nossa presença naquele hotel a necessidade que sentíamos de dizer-lhe «muito obrigado». A seguir, Sven-Goran Eriksson agradeceu, emocionado, o tributo, usando, tanto quanto possível, o português como língua. «Guardo este momento para o resto da minha vida», disse.
E estando o ambiente a ficar perigosamente sentimental para todos, quando o que se queria era fazer a festa de uma vida, sem pensar nas outras coisas, Toni, naquele estilo bonacheirão/sentimentalão, que teve no grande amigo Humberto Coelho, que deixou de lado a faceta institucional de vice-presidente da FPF que tem assumido, e esteve sempre de rosto iluminado, como se tivesse acabado de fazer um hole in one, um parceiro à altura, lançou o repto, a Eriksson: «Mister, temos ali um quadro, há jogo daqui a pouco, e temos de fazer a equipa.» Gargalhada geral, e Toni, de marcador em punho, foi escrevendo o «onze inicial» ditado por Sven-Goran Eriksson, por ele próprio, e até pelos jogadores. Esta escolha, começou por onze, e acabou com a titularidade para todos!
Foi então que Toni disse a Sven-Goran Eriksson que ia fazer a viagem para a Luz no autocarro, com a equipa, no seu lugar de sempre, na fila da frente, ao lado de Toni e Humberto Coelho. O novo autocarro do Benfica tem dois lugares num dos lados e um no outro, pelo que a primeira fila ficou assim preenchida. Quando Eriksson treinou, pela primeira vez, os encarnados, havia duas filas de duas cadeiras, e o outro lugar da frente, ao lado de Humberto, pertencia a Manuel Galrinho Bento (e ai de quem quisesse sentar-se lá!), que foi recordado, assim como Pietra e Pacheco, recentemente falecidos, ou Frederico, Chalana, Neno, Eusébio e Fernando Caiado, que já não estão entre nós, e fizeram parte do percurso benfiquista de Eriksson.
Na viagem para a Luz, feita com batedores da PSP a afastar o trânsito da hora de ponta (e muita gente deverá ter pensado que a equipa ia chegar atrasada ao jogo com o Marselha…), nova troca de equipamento — desta feita saíram as camisolas do Benfica e entraram as camisas e os casacos — e valerá a pena referir uma tirada genial de Valdo que, já perto do estádio, disse: «Olha, olha, acabaram de me gritar ‘força Florentino!’»
As emoções do estádio
Na zona contígua ao camarote presidencial, onde Eriksson chegou vinte minutos antes do kick-off do Benfica-Marselha, estava a aguardá-lo João Alves, que fez em 1982/83 uma dupla-maravilha com Shéu Han, e não quis faltar à homenagem ao mister. Mas, como se o tempo tivesse voltado para trás, as brincadeiras de há 40 anos regressaram, e Toni aproveitou para dizer ao luvas pretas, na presença de Svenis: «Vá lá João, pergunta agora ao mister por que é que não foste titular em Bruxelas, na primeira-mão da final da Taça UEFA…» Antes mesmo de Alves ter tido possibilidade de dizer que isso eram águas passadas, Eriksson fez gala do seu finíssimo sentido de humor, e foi lesto na resposta: «O Alves não jogou, porque o Toni disse-me para não o meter…» Gargalhada geral, perante a resposta, que desarmou tudo e todos. Depois, numa conversa a três em que estive com Alves e Eriksson, o luvas-pretas, um dos melhores médios da história do nosso futebol, disse ao técnico sueco, já muito a sério: «O Delgado deu-me, quando fui entrevistado para a A Bola TV, uma fotografia de Craiova, em que estou a falar consigo e com o dr. Amílcar Miranda, depois de um teste que deu negativo e determinou que não jogasse essa meia-final. Como sabe, depois de deixar de jogar, fui treinador durante muitos anos, e aprendi aquilo que muitas vezes os jogadores não querem ver: não há treinador algum que não mande a jogo quem lhe dá mais garantias de vencer.»
Antes de nos dirigirmos aos nossos lugares, um aviso dos organizadores do evento: aos 35 minutos tínhamos de abandonar o palco e irmos preparar a cerimónia de homenagem, que ocorreria no relvado, durante o intervalo. Assim foi, nova troca de roupa, e de camisola do Benfica vestida aguardámos junto à entrada lateral norte pelo fim da primeira parte, para pisar o relvado e fazer guarda de honra a Sven-Goran Eriksson, que entraria em campo, acompanhado por Rui Costa, Toni e Humberto, pela zona central. Depois de cada ex-jogador ser individualmente apresentado ao público — e tudo isto é do domínio público porque as televisões encarregaram-se de transmitir o evento — Eriksson entrou e voltou a cumprimentar um a um os antigos pupilos.
Tive oportunidade de estar em duas conquistas de títulos nacionais e de uma Taça de Portugal com Eriksson, e garanto que, apesar do drama envolvente que por vezes se esqueceu no meio do turbilhão de emoções para onde fomos atirados, nunca vi Svenis tão transbordante de alegria, tão sem pruridos de verter lágrimas e de dizer ao Estádio da Luz, que durante os 15 minutos da homenagem foi um verdadeiro Inferno da Luz, que estava a chorar. E não eram lágrimas de tristeza. Era difícil imaginar, para qualquer um, a começar pelo treinador sueco, que a homenagem do Benfica atingisse aquele pico emocional, que contagiou toda a gente, dentro e fora do estádio.
Feita a foto de família, que já tinha sido ensaiada no hotel, ainda sem João Alves, nova troca de roupa e, já à civil, assistiu-se no camarote à segunda parte do Benfica-Marselha. Mas, francamente, confesso que estava mais interessado na terceira parte, quando iríamos dizer «até sempre» a Eriksson, que sempre de sorriso no rosto e disponível para fotos e selfies ia comendo alguma coisa enquanto beberricava de uma flute de champanhe. Um a um os ex-jogadores despediram-se do mister e foram à sua vida. Mais ricos, depois de terem vivido uma das noites mais emocionantes das suas carreiras. Obrigado Svenis. Por tudo, que foi muito.